A RENÚNCIA. Dia 25 de agosto de 1961, Dia do Soldado. Depois de assistir ao habitual desfile militar, sem completar sequer o tempo de uma gestação normal, o presidente Jânio Quadros surpreendeu os brasileiros com sua renúncia: “Fui vencido pela reação e assim deixo o governo” ... “Desejei um Brasil para os brasileiros, afrontando a corrupção, a mentira e a covardia que subordinam os interesses gerais e aos apetites e às ambições de grupos de indivíduos, inclusive do Exterior” ... “Retorno agora ao meu trabalho de advogado e professor”. Aconteceu, assim, um aborto político. O presidente sumiu de Brasília e chegou no aeroporto de Cumbica, em São Paulo, levando consigo a faixa presidencial. Seu objetivo, dizem, era despertar um clamor popular, forçando seu retorno à presidência com poderes ditatoriais, apoiado pelos militares, que certamente não concordariam com a posse de Jango. Lá se ia mais uma esperança de dias melhores para os brasileiros. O que viria a seguir? O Vice, ao que parece na opinião dos mesmos a que o Presidente estava se referindo, era ligado aos comunistas e estava na China naquele momento. Seu perfil era o de um político perigoso, ligado a outro mais perigoso ainda, Leonel Brizola, então Governador do Rio Grande. A reação deste surpreendeu o Brasil. Seu nome, sempre respeitado por todos, passou daí em diante a merecer um destaque especial na história de nosso país. Ele não admitia golpe. Afirmava que Jango deveria ser empossado imediatamente como presidente. Jango demorava a chegar. Corria a versão, por aqui, de que havia o risco do seu avião ser abatido. Deu mil voltas pelo mundo, mas chegou, via Montevidéu-Porto Alegre, e acabou de fato sendo empossado, mas num sistema denominado de “parlamentarista”, uma fórmula esperta conseguida pelos políticos das altas cúpulas de ambos os lados. Depois um plebiscito devolveu-lhe o sistema presidencialista, mas, em seguida, em 31 de março de 1964, retiraram-lhe tudo, forçando-o a refugiar-se aqui e depois no exterior. O preço da conciliação custou caro a Jango, a Brizola e a muitos brasileiros. A partir daí uma sucessão de episódios ditatoriais patrocinados pela direita produziu uma marca profunda na história do Brasil.
Vale a pena recordar e refletir sobre o período da “Legalidade”. O nome vem de um fato simples: a Constituição deve ser preservada; se o presidente renunciou, deve ser empossado o vice-presidente. Simples e transparente. As variáveis pareciam poucas, e, portanto, facilmente compreendidas por todos. Não é como agora, quando as variáveis são tantas, que é possível até dizer, como fazem muitos, que o que está à esquerda é a direita e o que está à direita é a esquerda. A complicação é tamanha que um presidente, que antes parecia de esquerda, parece agora de direita e muitos que antes eram de direita dão agora uma de esquerdistas. Com a “globalização” metida no meio para explicar tantas coisas, a situação torna-se ainda mais complicada.
O POVO E O PALÁCIO
As forças armadas nunca enfrentaram uma situação tão difícil como a que se originou da renúncia de Jânio. A outra, também difícil, foi a guerrilha do Araguaia, na década de 1970, Nessa, o povo aderiu, mas com um número pequeno e disperso de pessoas, numa situação difícil de entender, pois Delfim Netto proclamava com entusiasmo o “milagre brasileiro”. Lembram-se? Aquele em que cresceria o bolo, que depois seria repartido. Até hoje se espera a divisão do bolo ... A “legalidade”, defendida pelo Rio Grande, havia sido diferente. A situação era de fácil entendimento, e o povo aderiu em massa.
É interessante observar que a “Legalidade” foi um movimento “palaciano”, com um governador democrático e uma adesão total do povo. Mas, paralelamente à liderança de Brizola, surgiu espontaneamente uma forte organização popular, que foi denominada de “resistência democrática”. Ela espalhou-se rapidamente pela capital e pelo interior do Estado, graças a um manual anônimo, simples, mimeografado, que fornecia instruções sobre a maneira de o povo organizar-se em comitês. Foram, portanto, dois movimentos acoplados. O Comitê Central da Resistência Democrática, principal centro desse movimento, tinha sua sede no Mata-Borrão, prédio de madeira, construído na esquina da Borges com a Andrade Neves, com um formato especial, semelhante àquele instrumento chamado pelos mais antigos de Mata-Borrão, que servia para enxugar o excesso de tinta das canetas. O prédio, onde depois foi construída a sede da Caixa Econômica Estadual, servia para a exposição das obras do Governo do Estado. O movimento no “Mata-Borrão” era uma festa política, formando inclusive um batalhão de combate. Numa das assembléias universitárias houve uma proposta de tomar um navio que estava atracado no porto, acatada com vibração pelos presentes. Alguém, no entanto, ponderou que isso deveria ser parte de um conjunto de medidas da resistência e que as etapas seguintes deveriam ser planejadas: tomar o navio e depois fazer o que? Um pouco irritado com a ponderação feita, o acadêmico que presidia a assembleia gritou que se tomaria o navio e se discutiria o que fazer depois. Mas a ideia acabou se esvaziando, e o navio ficou a salvo do ataque dos acadêmicos. A sede da FEURGS (Federação dos Estudantes da Universidade do Rio Grande do Sul), localizada no Restaurante Universitário, onde hoje funciona o Instituto de Identificação, era guarnecida permanentemente por 50 universitários, sob o olhar atento de Petracco, que coordenava sessões de adestramento físico e de pregação revolucionária, “para que não acontecesse o que ocorreu com a UNE, que foi tomada pela direita”, tendo seu presidente, hoje deputado Aldo Arantes, vindo para cá para unir-se à resistência democrática. Acadêmicos de Medicina, Odontologia e Farmácia inscreveram-se em massa, organizaram um banco de sangue e fizeram listas de doadores presumivelmente necessários para as batalhas que se aproximavam. Os dirigentes do Mata-Borrão, levando em conta a marcha que seria feita ao centro do país, consideravam estes estudantes como “voluntários especiais”. O prédio do R. U., tão bem guarnecido na época, foi “desapropriado” pelo golpe de 1964, transformado em “escola de polícia” (que ironia) e depois no atual Instituto de Identificação, sem que até hoje os acadêmicos do DCE, entidade legalmente sucessora da FEURGS, tenham movido uma ação judicial requerendo a reintegração de sua posse. O lindo painel pintado por Lacatelli na parede do segundo andar, simbolizando a “aliança operário-estudantil-camponesa”, foi totalmente destruído por seus novos ocupantes.
Os Centros Acadêmicos estavam todos mobilizados. No Centro Acadêmico Sarmento Leite repetiam-se as assembléias e formavam-se comitês de resistência democrática, com passeatas de rua até o Palácio e preocupação com um futuro que se mostrava revolucionário. De 1961 a 1964, o movimento continuou com um entusiasmo crescente. Bruno Costa sucedeu Petracco, e a FEURGS permanecia com sua bandeira de aliança com operários e camponeses, com a pregação das “reformas de base”, que incluía uma reforma na universidade, que deveria ter uma visão social mais ampla, menos elitista e mais voltada para o povo. No Centro Acadêmico Sarmento Leite já se destacava a liderança tranquila e respeitada de João Carlos Haas Sobrinho, que eleito presidente, foi destituído pelo golpe de 1964 e substituído por três colegas nomeados pelos militares. Depois, já como médico residente, foi preso inúmeras vezes pelos militares, cansou-se das prisões e sumiu. Em 1970, soube-se que estava na região do Araguaia, onde primeiramente tornou-se um médico muito estimado pela população e depois um comandante guerrilheiro, morto heroicamente de metralhadora em punho em combate desigual com os militares. Esses até hoje não indicaram para a família o local onde seu corpo foi enterrado, correndo a história tétrica de que suas mãos foram decepadas, para a devida identificação dos órgãos de segurança. A placa em sua homenagem, solidamente incrustada numa das paredes do CASL, é muito pouco para esse médico que generosamente deu sua vida pelo sonho de ajudar o povo brasileiro.
(OBSERVAÇÃO: a faculdade de medicina transferiu-se para o Hospital de Clínicas, onde se instalou o CASL. Infelizmente, os novos dirigentes não tiveram o devido cuidado com esta placa que sumiu-se e também não tiveram o respeito de fazer uma reprodução e afixá-la no novo local).
LEMBRANÇAS E REFLEXÕES
Victor Douglas Nuñez, advogado de sindicatos de trabalhadores, dedicou-se intensamente à propaganda, integrado ao Batalhão Portinari. Faixas, cartazes, textos, eram discutidos e produzidos com ampla participação popular e com a ajuda de artistas, jornalistas, publicitários e sindicalistas, em grande parte integrantes desse Batalhão. Foi um verdadeiro mutirão popular e patriótico. O povo trazia suas sugestões e levava o material para discutir em seus comitês, que passaram a existir em cada quadra, como nunca havia acontecido em qualquer outra época. O trabalho era empolgante e a participação popular, consciente. Pode-se pensar na hipótese de que, depois das concessões da Legalidade ao Parlamentarismo, o povo tenha se sentido traído e, por isso, abandonado o movimento de resistência democrática, dando força à direita e ao próprio golpe de 1964. O Teatro de Equipe na época era uma organização pujante, tendo como um de seus diretores o arquiteto Milton Flores da Cunha Mattos. Ele, Ivete Brandalise, Paulo Cesar Pereio, Paulo José, Mario de Almeida, Lara de Lemos e muitos outros, formaram o Comitê de Artistas e Intelectuais, com cerca de 240 participantes.
Empolgada com o movimento de resistência democrática, Lara de Lemos criou o Hino da Legalidade, cuja letra foi aceita por todos. Faltava a música. O ator Paulo Cesar Pereio, inspirado pelos versos da poetisa, passou a assobiar uma música, adaptada à letra, na companhia de Lara e de Demóstenes Gonzales. Foram elaborados dois arranjos pelos Maestros Alfredo Hulsberg, Karl Faust e Salvador Campanella. A letra de Lara de Lemos e a música de Paulo Cesar Pereio revelam muito bem o entusiasmo e o patriotismo que empolgava a todos naquele momento. Eis os versos de Lara de Lemos:
Avante, brasileiros/De pé/Unidos pela liberdade/Marchemos todos juntos/Com a bandeira que prega a lealdade/Protesta contra os tiranos/Te recusa à traição/Que um povo só é bem grande/Se for livre sua nação
Victor Nuñez, chamado de Comandante Victor pelo Batalhão Tiradentes, que não concebia organização sem hierarquia, era um dos dirigentes do Comitê Central de Resistência Democrática e lembra emocionado os episódios referidos anteriormente. Recorda também que via com desconfiança um grupo de voluntários vindos de São Paulo, “que mais observavam do que trabalhavam”, “muito radicais”, vistos com suspeita por todos, que propuseram incendiar o Mata-Borrão, o que felizmente não foi aprovado, alegando um protesto pela “traição” de Jango, por ter aceito ser empossado como presidente num sistema parlamentarista. No dia 20 de setembro, houve uma grande comemoração com a participação do povo que se inscrevera como voluntário nos comitês de resistência democrática. Estavam presentes autoridades civis, militares e eclesiásticas. Houve uma sequência de discursos emocionados. A partir daí praticamente desapareceu o movimento popular. Brizola e Jango aceitaram a versão modificada de “respeito à Constituição” e continuaram as tratativas para que os ânimos se acalmassem em todo o país. Dizia-se na época que, como sempre, apenas o Rio Grande do Sul estava inconformado com as soluções encontradas, pois o povo do resto do país havia aceito tudo muito pacificamente. A direita deve ter anotado com satisfação este importante dado, pois, na verdade, o Estado mais rebelde era o nosso.
Foi um período rico de ensinamentos políticos, com a exigência de uma análise mais profunda a ser feita por nossos historiadores. Resta a reflexão de que, na aparência, os mesmos problemas continuam, até mais agravados. Lideranças foram destruídas ou podadas e um sufoco impediu a formação de novas e fortes lideranças em qualquer segmento social. Imaginem-se lideranças que realmente estejam voltadas para o interesse do país, com um discurso claro, sem subterfúgios, transparente, humanista e generoso, e não as muitas que sobreviveram à ditadura, que passaram a ter uma postura flutuante e pusilânime, bem ao gosto dos donos do poder. Sente-se que todos os segmentos sociais, inclusive as forças armadas, saíram perdendo. Tem-se a impressão de que, apesar de todo o modernismo, o Brasil da maioria continua apegado àquela situação política da década de 1960, como que paralisado num passado cujas lutas não chegaram a uma etapa final, esperando que novas forças sociais se levantem e continuem uma trajetória que ficou no meio do caminho.
NOTA: este texto foi publicado originalmente em 1998, quando havia grandes esperanças com relação ao futuro. É importante observar as oscilações das forças de esquerda e de direita desde aquela época até os dias atuais. Estamos às vésperas de uma nova eleição. O país vive hoje um momento decisivo de sua vida política, em que a defesa da democracia surge como o aspecto mais importante na luta atual.
(*) Bruno Mendonça Costa é médico psiquiatra. O texto acima foi publicado originalmente na coleção Médicos (Pr)Escrevem 4, Ed. AGE, 1998).