por Nora Prado (*)
Nesta semana terminei de ler LONGE DA ÁRVORE de Andrew Solomon, uma verdadeira bíblia sobre a condição de várias categorias de pessoas com necessidades especiais. Num extenso e aprofundado trabalho de pesquisa, que lhe tomou mais de dez anos, o autor se debruçou sobre 10 tipos de síndromes cujas pessoas afetadas e os seus pais narram como a enfrentaram, suas dores e vitórias ao longo de uma vida inteira dedicada a amenizar suas sequelas e aprender a conviver com dignidade e o máximo de qualidade de vida. Nesta jornada, com passagens pelo inferno na terra, Andrew entrevistou centenas de famílias cujas proezas são verdadeiras lições de vida e uma inspiração para todos que tenham algum familiar com necessidades especiais.
Cada capítulo do livro é dedicado a uma dessas anomalias que tornam a vida do portador e da sua família um campo aberto ao preconceito, ignorância, injustiça, bullying, mas, igualmente um campo de batalha instigante na busca por igualdade, tratamento adequado, justiça social, acolhimento e compaixão. Não raro, os familiares e os próprios portadores das necessidades especiais se transformam em militantes em prol da visibilidade e assistência para a própria causa. Suas lutas persistentes e obstinadas revelam o quão distante a nossa sociedade está de ser acessível e inclusiva para os diferentes, e eles são milhões em nosso planeta.
Nessa verdadeira catedral de pessoas especiais vivendo em condições extremas, cuja trajetória é impregnada de vulnerabilidade física e emocional, percebemos a força inerente em cada um desses personagens cuja história conta sobre aceitação e convivência com as limitações em níveis, muitas vezes, insuspeitos. Andrew Solomom, além de dar voz aos próprios diferentes, ilumina com respeito, admiração e solidariedade cada uma destas famílias ao expor com o máximo de honestidade as ambiguidades, dificuldades e superações alcançadas por cada uma delas. O livro presta um favor inestimável aos próprios portadores de síndromes diversas, mostrando uma rotina árdua e desgastante, mas também bem sucedidas, além de oportunizar discussões fundamentais sobre os limites do sofrimento humano, das intervenções médicas, da ética científica e uma série de questionamentos sobre a ditadura da normalidade.
Uma narrativa que não se acanha em mostrar as ambivalências e polêmicas dentro das inúmeras associações e instituições que defendem as causas dos portadores de necessidades especiais; mostrando que nem sempre há consenso e, o que hoje é norma, amanhã pode ser que esteja ultrapassada, colocando em xeque as verdades absolutas e as certezas imutáveis. Leitura, por vezes, difícil pois nos confronta com realidades dolorosas do ponto de vista físico e psíquico, e na maioria das vezes com pouquíssimas chances de evolução para melhor.
Para cada síndrome Andrew nos coloca frente à um consistente panorama genérico sobre os aspectos mais comuns e a forma de manifestação da doença, mas também pontua com dezenas de casos específicos, dando relevo a cada indivíduo e exaltando a singularidade de cada uma destas vidas. Para tanto o autor entrevistou centenas de portadores de necessidades especiais, famílias, médicos, especialistas, advogados, ativistas, psicanalistas, neurologistas, assistentes sociais, psicólogos, historiadores, antropólogos, cientistas, pesquisadores revelando um estudo profundo sobre cada síndrome e um embasamento teórico digno de nota.
A maturidade com que desenvolve o assunto do processo de aceitação e os modos de tratar cada paciente, mostra a diversidade que cada família tem para enfrentar esse desafio e como o amor e os laços afetivos são fundamentais para isso. Desde o choque inicial ao receber a notícia, ainda na maternidade, passando pelo luto e a progressiva luta diária para melhorar as condições de um filho especial, até as constatações dos limites que as intervenções enfrentam pela própria natureza da síndrome. Um painel amplo com diferentes matizes no enfrentamento do problema e a busca por soluções que atenuem a dor e promovam conforto físico, emocional e espiritual.
Neste rico relicário humano chorei em muitas passagens e me identifiquei em inúmeros relatos por ser mãe de um filho especial. A dor da solidão ainda me parece o espinho eterno que mais pressiona e dói, sem que quase nada possamos fazer a não ser conviver com a dor.
Surdez, nanismo, síndrome de down, autismo, esquizofrenia, deficiências múltiplas, prodígios, filhos de estupros, criminosos e transgêneros são as dez categorias abordadas no livro. Naturalmente há muito mais, mas o autor se debruçou sobre estas e creio que já foi de grande ajuda, não somente pela visibilidade, mas por acentuar o caráter de identidade presente em cada um destes grupos. O conceito de identidade vertical e identidade horizontal a que ele se refere, e aborda em profundidade no livro, nos leva a perceber o quão importante significa pertencer a um grupo com características específicas no fortalecimento da própria personalidade quanto na socialização inerente ao mesmo. Por identidade vertical se compreende todas as características herdades dos pais como tonalidade de pele, cor dos olhos, estatura, aptidões naturais e identidade horizontal todas as características alheias aos pais e que se constituem como por exemplo nas síndromes adquiridas ainda no ventre materno. Essas características serão encontradas longe da família de origem, nos pares distantes, mas, que se irmanam nas semelhanças da sua condição especial.
Uma das coisas interessantes do livro é que o seu autor teve dislexia na infância e a aceitação e amor com que seus pais o acolheram e o trataram, contrasta com o descaso e abandono ao qual lhe dispensaram quando Andrew se declarou gay. O desprezo dos pais pela condição do filho é uma outra nota de coragem que Andrew revela sobre a sua história na busca pela sua identidade horizontal. Ao longo do livro, já casado há alguns anos, ele se descobre inclinado a ser pai. Sua trajetória pessoal foi impactada pelo seu trabalho e resultou na concepção de George o filho biológico seu e de seu companheiro.
O livro procura mostra que apesar de longe da árvore, os filhos especiais podem e devem se integrar aos seus pares das identidades horizontais, da qual fazem parte, e que isso pode ser um movimento que os fortalece e os torna mais confiantes diante de suas condições específicas.
Longe da Árvore discorre sobre o doloroso e difícil caminho que todos as pessoas especiais enfrentam desde o nascimento, assim como pais e mães ao lidar com um ente portador de uma síndrome rara. Trata de aproximar os diferentes e mostrar que sua existência é digna de valor e amor, independente de limitações, pois igualmente possuem talentos e habilidades únicas para fazê-los singulares em suas vidas e nas de suas famílias. Cabe a nós, da comunidade dos diferentes, educar a sociedade para uma existência mais harmoniosa em que eles sejam integrados e reconhecidos como nossos irmãos e suas diferenças sejam levadas em conta para somar ao grande e múltiplo tecido da família humana. Par tal utopia, é necessário desapego dos cânones de normalidade, compreensão, solidariedade, amor e compaixão. Parece simples escrito no papel, mas na realidade é um passo ousado e ainda aquém do que deve e precisa ser feito.
Longe da Árvore é uma imensa oportunidade para a sociedade civil se conectar com esse universo paralelo absolutamente fascinante. Divulgar essa joia é o mínimo que eu posso fazer.
Porto Alegre, 2 de fevereiro de 2021.
* Nora Prado é atriz, professora de interpretação para Teatro e Cinema, atuou na Escola das Artes do Palco - SP.