LEMBRANÇAS DA PANDEMIA
- Alexandre Costa
- 1 de abr. de 2021
- 4 min de leitura
por Nora Prado (*)

Já estamos no segundo ano de quarentena por conta da pandemia de Covid 19 no Brasil e não temos a menor ideia de quando sairemos dela. Nosso desafio diário é nos manter vivos, sadios de corpo e mente até que, finalmente, chegue a nossa vez na fila da vacina que anda a passos de tartaruga. E a propósito da vacina, é com muita alegria e esperança que vemos consternados a quantidade de imagens de pessoas sendo vacinadas pelo país a fora. É um momento tão aguardado por todos que fixar no tempo esse momento de resgate da saúde e valorização da vida se tornou quase uma obrigação de fé no mundo inteiro, por aqui, então, nem se fala.
Nesse rito de passagem, muitos aproveitam para levarem cartazes que expressam o sentimento do momento: Viva o SUS! Fora Bolsonaro! Fora Genocida! Vacina, Sim! Viva a Ciência!
São algumas destas expressões que muitas senhoras e senhores empunham, orgulhosos, durante o momento sagrado da vacinação. Estes posts, alguns comoventes outros divertidos, têm invadido as nossas linhas do tempo do facebook numa onda de esperança e otimismo por dias melhores em meio o caos reinante neste cemitério à céu aberto no qual se transformou o país. Semelhante as milhares de imagens que os europeus fizeram do dia da vitória, ao término da Segunda Guerra Mundial, com muitos abraços e beijos, e as população eufórica invadindo as ruas, essas imagens se constituem em potente relicário de resistência ao genocídio brasileiro e a celebração da vida.
Fico imaginando, num futuro remoto, quando os historiadores quiserem saber mais sobre esse período horrendo como esse material será importante. Por documentar com precisão o ato e o pano de fundo sobre o qual vivíamos em 2021. As nossas imagens com máscaras de pano das mais variadas cores e padrões em contraponto com as aglomerações nas praias e festas clandestinas. As milhares de covas abertas nas imagens aéreas dos cemitérios abarrotados.
A arqueologia futura contará como sobrevivemos aos trancos e barrancos nesses dias de luto e dor. Os aniversários solitários e os encontros registrados pelo zoom. A quantidade monumental de lives e as aulas remotas via internet. A família nuclear reunida no sofá em mais um fim de semana assistindo a série do momento.
Por outro lado, penso o quanto esse momento de solidão experimentado por muitos, com ansiedade e até de depressão ou desespero, por alguns, não terá sua serventia para o futuro próximo? Quantos relatos escritos nessa quarentena não surgirão em forma de diários, romances, poemas, músicas, peças de teatro e roteiros de cinema? Quantas colagens, fotografias, desenhos, pinturas, esculturas não serão expostas, dentro em breve, narrando esse período peculiar da humanidade?
Quantas crianças terão sido geradas mesmo em meio a dor e o desencanto para vingar nossas frustrações e traumas de viver escondidos dentro de casa por tanto tempo? Como todos nós voltaremos ao convício social depois desta provação? Não sei responder a estas perguntas, mas certamente, será diferente.
Mas o essencial, me parece, é aproveitar essa oportunidade de viver consigo mesmo, em maior intensidade e profundidade, para se autoconhecer. Para refletir sobre como queremos viver, quem realmente somos e para que servimos? Perguntas básicas para seguir mais perto de si e com maior qualidade de vida daqui para frente.
Uma das maiores lições desta pandemia, entre tantas, foi a de que precisamos de muito pouco para viver. A sociedade de consumo agoniza e tenta desesperadamente dizer o contrário fabricando sonhos e desejos artificiais. Mas o fato é que precisamos de comida, água, uma cama e um teto para nos proteger e descansar. Amigos e familiares com quem trocar afeto, idéias e um trabalho com o qual nos identificamos. Roupas e sapatos, somente o essencial, mas não prescindimos sem arte. Ela sim, se tornou vital. Ponto irradiador de ânimo, coragem, provocação, reflexão, conforto, paz de espírito ou inquietação, tentação, motivação, inspiração e prazer. Fonte de entretenimento e deleite, espaço para o mundo subjetivo florescer e colorir a nossa alma.
Por ironia, aquilo que para tantos era considerado supérfluo se revelou essencial. Infelizmente o Teatro e todos os profissionais das artes cênicas foram os primeiros a parar e serão os últimos a retornar. Mesmo com a constatação de que a arte é artigo de primeira necessidade e reguladora da psiquê, o auxílio emergencial foi interrompido e a nossa categoria foi deixada à deriva. Com esse novo valor ridículo de 250,00 reais proposto pelo genocida de plantão fica evidente que o governo segue desprezando a arte e o artistas.
Os arqueólogos do futuro certamente terão muito o que contar para as gerações seguintes sobre esse singular período da história humana, especialmente a brasileira, onde numa época que já existia vacina para a covid o Brasil e Porto Alegre foram o epicentro da pandemia mundial que ultrapassou a marca de 300 mil mortes.
Até lá, sigamos escrevendo e fazendo dos nossos diários um motivo a mais para viver.
Porto Alegre, 30 de março de 2021.
* Nora Prado é atriz, poeta, professora de interpretação para Teatro e Cinema, atuou na Escola das Artes do Palco - SP.