Para começar a nossa conversa vou lembrar um papo que tive com colegas repórteres que conheci quando trabalhei na Guerra Civil Angolana, nos anos 90. Em uma noite, misturei-me com uma turma de repórteres que rodavam pelo mundo fazendo cobertura de guerras e estavam lá porque havia fracassado mais um acordo de paz entre o Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA), comunista, e a União Nacional para a Independência Total de Angola (Unita), anticomunista. Estavam envolvidos no conflito a extinta União Soviética (formada pela Rússia e outros 14 países), Estados Unidos, Cuba, África do Sul e o Brasil, que vendia armas, tanques e novelas para o governo, que era do MPLA. Estávamos bebendo no boteco de um português que fora indicado pelo porteiro do hotel, na cidade de Luanda, a capital angolana. No meio da conversa começou o papo sobre qual teria sido a guerra mais violenta da história. A maioria achava que havia sido a Primeira Guerra Mundial (1914 a 1918), porque fora travada em trincheiras. Eu fazia parte do grupo que defendia como sendo a mais violenta a Guerra do Vietnã (1955 a 1975), porque os combates foram travados na selva.
Como acontece na maioria das vezes nas discussões entre repórteres nas mesas dos botecos, não chegamos a nenhuma conclusão. Mas sempre que estoura uma guerra lembro dessa conversa, por ter sido uma oportunidade que tive de conviver com uma galera muito interessante. Antes de seguir, vou dar uma explicação para não deixar uma bola viva picando na área, um jargão emprestado do futebol que nas redações é usado para lembrar o repórter que falta uma explicação no seu texto. A Guerra Civil Angolana começou em 1975 e terminou em 2002 com a vitória do MPLA, deixando um rastro de 800 mil mortos e 4 milhões de refugiados. As novelas brasileiras são muito populares por lá, tanto que existe um mercado público frequentado por milhares de pessoas chamado Roque Santeiro, nome de uma novela da Globo exibida no Brasil entre 1985 e 1986. Voltando à nossa conversa. Hoje, mais de 30 anos depois que tive essa conversa em Luanda, pela experiência que acumulei nesse tempo na lida de repórter digo que cada guerra tem a sua marca, que é fixada na memória da opinião pública por uma foto, um documentário ou uma reportagem de jornal. A Guerra do Vietnã ficou simbolizada pela foto da menina Kin Phuc Phan Thi (9 anos na época, em 1972) correndo pela rua com o corpo queimado por napalm (um tipo de bomba incendiária), lembrou o professor Leonardo Trevisan, da Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM), no programa Canal Livre (em 6/03), da Band. A Primeira Guerra Mundial é lembrada pelas fotos dos corpos calcinados e mutilados dos soldados nas trincheiras. A Guerra Civil Angolana pelas imagens de crianças que tiveram as pernas arrancadas pelas minas terrestres. Nos dias atuais ainda existem minas ativas no país. Em 2018, elas feriram e mataram 6.897 pessoas, sendo que 54% foram crianças.
E qual será a marca da invasão das tropas russas na Ucrânia? Essa guerra é diferente de tudo a que já assistimos até os dias de hoje. Porque ela está sendo transmitida 24 horas online pelas emissoras de TV e redes sociais. Lembro o seguinte. No Vietnã, o repórter precisava levar uma grande equipe de apoio e equipamentos pesados, e o seu trabalho só era publicado dias depois. Na Ucrânia, o repórter precisa apenas de um celular para transmitir suas informações online e em tempo real. As famílias estão sentadas à mesa fazendo uma refeição enquanto assistem ao vivo os aviões russos bombardearem as casas das pessoas.
Assistem ao vivo mulheres, crianças e animais de estimação se esgueirando pelos escombros em busca de uma saída para escapar da chuva de bombas. Também graças à tecnologia os repórteres têm acesso a um maior volume de informações qualificadas sobre os bastidores da guerra. Não sabemos tudo sobre os presidentes da Rússia, Vladimir Putin, 69 anos, e da Ucrânia, Volodymyr Zelensky, 44 anos. Mas o suficiente para explicar ao nosso leitor, com um bom grau de segurança, o que está acontecendo. No momento em que escrevo, quarta-feira, dia 9 de março de 2022, às 3h45min, horário de Brasília (DF), é o 14º dia da guerra da Ucrânia. Se o conflito terminar nos próximos minutos, o volume de informações – textos, fotos, vídeos e áudios – que já transmitimos é bem maior do que aquele mostrado nos primeiros 14 dias de qualquer outra guerra do passado. Por quê? Simples, ela está sendo transmitida online.
E esse imenso volume de informações a tornou uma guerra grande demais para não ser um dos assuntos nos debates políticos entre os candidatos às eleições brasileiras, principalmente a presidencial. Vai ser muito interessante acompanhar os debates. Os motivos pelos quais esta guerra está sendo travada são muito complexos para serem explicados em poucas palavras ou resumidos a uma disputa entre a esquerda e a direita. Vai muito além disso. Mas não são esses motivos nos quais o leitor está interessado. O que ele quer saber de uma maneira simples, objetiva e elegante é: “por que há uma família fugindo com os filhos e os seus pets das bombas sendo jogadas pela artilharia?”. São segundos de imagens e os candidatos terão que dar a sua versão sobre aquela imagem. Um fato que está passando batido pela imprensa. Essa é a primeira guerra em que os animais de estimação aparecem como personagens. Eles não existiam nas outras guerras? Não acredito nisso. Digo que as novas tecnologias propiciaram ao repórter apresentar esse personagem ao leitor. Para fechar a conversa. Lembro que, poucos anos atrás, a vida do repórter era um inferno na cobertura de conflitos. Não pelo perigo de ser morto por uma bala ou bomba. Isso faz parte da lida. Mas pela dificuldade de transmitir o seu material. E dizer que hoje basta apertar um botão e entrar online. (*) Carlos Wagner é jornalista, repórter, graduado em Comunicação Social – habilitação em Jornalismo, pela UFRGS. Trabalhou como repórter investigativo no jornal Zero Hora de 1983 a 2014. Recebeu 38 prêmios de Jornalismo, entre eles, sete Prêmios Esso regionais. Tem 17 livros publicados, como “País Bandido”. Aos 67 anos, foi homenageado no 12º encontro da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (ABRAJI), em 2017, em São Paulo. Atualmente, Carlos Wagner é responsável pelo site Histórias Mal Contadas.