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G.A.L.A. MOSTRA O MELHOR DE GERALD THOMAS, POR Nora Prado (*)

Foto do escritor: Alexandre CostaAlexandre Costa

O novo espetáculo de Gerald Thomas, G.A.L.A. que estreou ontem, no SESC Avenida de São Paulo, de modo virtual para o Brasil e mundo, mostra o melhor do diretor e sua intérprete Fabiana Gugli. Com texto e direção do diretor brasileiro mais criativo e polêmico das últimas décadas, a encenação ambientada num mar de plástico azul, mostra uma mulher num barco estraçalhado à deriva. Ao fundo, no horizonte, duas imensas chaminés atômicas desprendem fumaça tóxica e dão o tom apocalíptico no qual ela e nós estamos submersos neste novo milênio.

Utilizando, pelo menos, quatro câmeras, Gerald, usa com propriedade a tecnologia à serviço da narrativa nesse modo híbrido ao qual o Teatro está sujeito, desde o início da nossa quarentena, em tempos de pandemia. Com elementos da ópera e a cenografia imponente, a excelente interferência da trilha sonora e uma iluminação sofisticada, característicos da sua obra, a peça vai nos envolvendo de imediato desde o início. Vestindo um longo preto, a personagem Gala, usa penas coloridas na cabeça, botas e um poá, enquanto dança em meio as ruínas da nossa civilização. Numa figura mítica que lembra Carmem Miranda, Gala vai alternando momentos de euforia, desespero, cinismo e tristeza enquanto conta suas graças e desgraças num monólogo cheio de tormento e angústia numa espécie de balanço de vida. Ela alterna o interlocutor do seu drama entre o seu amado Sancho, com quem conversa ao telefone, o público e ela mesma.

Seu fluxo de pensamento cria uma oportunidade singular para discutir sobre o sentido da vida, a essência da alma humana, as relações afetivas e a solidão, mas, não de forma linear. Num misto de convulsão e lucidez, Gala expressa a nossa impotência e vulnerabilidade diante do impasse civilizatório, no abismo climático e político no qual somos agentes e vítimas. Numa linguagem coloquial e direta, o texto provoca a nos reconhecemos como Gala, tentando juntar os casos dos pratos quebrados, das rupturas sociais e emocionais pelas quais somos diretamente afetados.


A exemplo do que acontece num terreiro, Gerald se vale de Fabiana, como “cavalo” para exprimir sua dor e expectativa em meio ao caos. Com um alter ego a altura da genialidade do autor, Fabiana se move com desenvoltura pela cena e com as marcações específicas para cada câmera, foco de luz e música correspondente. Com grande domínio técnico, fluência gestual e sensorial, a atriz se entrega de corpo e alma ao fluxo de pensamento-emoção, revelando qualidades antagônicas e momentos de intensa sensibilidade. Gala vai atualizando as nossas próprias perplexidades diante da vida e assumindo o seu papel de feminino restaurador da ordem que, apesar de tudo, ainda é capaz de encontrar sentido nesse mar inóspito.

Sua percepção clara das nuances emocionais desse profundo mergulho na consciência-inconsciência de Gala, dão a dimensão perturbadora dos limites a que nós chegamos e que a pandemia intensificou. As referências ao Brasil ao mundo contemporâneo transparecem indiretamente, passando ao largo de qualquer ideia panfletária e longe de ficar datada. Com inteligência e talento de um autor que bebeu nas melhores fontes da dramaturgia, Gerald, nos entrega água de verdade e nos comove na medida humana. Ainda que se valha de recursos cênicos e artifícios tão reais quanto o mar Feliniano de E La Nava Vá, que evoca o fim de uma era e adivinha o nascimento de outra, numa despedida por vezes melancólica e trágica, mas com irreverência e humor.


Numa combinação perfeita entre conteúdo e forma, traduzido por uma grande atriz que dá corporeidade e voz a suas ideias, Gerald Thomas mostra que segue em grande forma como autor e encenador da atualidade. Devolve em som e fúria uma faísca que travessa séculos e toca em nosso coração.

Que o retorno ao modo presencial possa nos devolver, também, o prazer de assistir ao vivo essa grande experiência teatral.

Porto Alegre, 23 de setembro de 2021.


(*) Nora Prado é atriz, poeta, professora de interpretação para Teatro e Cinema, atuou na Escola das Artes do Palco - SP.

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