Natalia Pietra Méndez

A pergunta que norteia este texto é como a teoria feminista pode contribuir para compreender alguns fenômenos econômicos e sociais evidenciados e aprofundados ao longo do ano de 2020 com a pandemia provocada pela Covid-19? Partindo dessa perspectiva teórica, que enfoca as relações de gênero e as considera um dos principais aspectos estruturantes das relações socioeconômicas, procuro discutir o que caracteriza o momento que vivemos como uma pandemia patriarcal. Tentando fugir do senso comum que afirma que pode haver algo de benéfico em tudo o que vivemos o ano passado (e que, a depender dos governos locais pode se estende para o novo ano), saliento o caráter fundamentalmente excludente da pandemia. Trata-se de um contexto que tem favorecido a perda de direitos para toda a população e, especialmente, para as mulheres. Ao mesmo tempo, a situação favoreceu a exposição da crise do atual capitalismo que se evidencia em diversos aspectos, mas, no espaço deste texto, abordarei apenas a crise relacionada ao modo como está organizada a reprodução das condições de vida.
Tomei o termo pandemia patriarcal emprestado de um artigo publicado por Rebecca Gordon, professora de filosofia da Universidade de São Francisco[2]2. Nele, Gordon discutia que, embora a pandemia da Covid -19 tenha resultado – no caso dos Estados Unidos - em mais mortes de homens do que de mulheres, trata-se de um momento que evidenciou processos de violência contra as mulheres tais como: a sobrecarga do trabalho como cuidadoras, a situação de precarização das mulheres que sobrevivem em empregos relacionados ao cuidado (empregadas domésticas, babás, cozinheiras, etc).
Estou de acordo com estas discussões levantadas por Gordon, mas me permito utilizar o termo pandemia patriarcal para além de sua proposta inicial e pensar sobre um movimento mais amplo. A pandemia é patriarcal não apenas porque mostrou a sobrecarga do trabalho feminino, algo que poderia, ser corrigido, nas famílias heteronormativas, com uma divisão mais equânime do trabalho. Este jeito “individual” de resolver as coisas enquanto as famílias de classe média permanecerem em isolamento não responde aos reais problemas. Ao meu ver, a pandemia deixou à mostra um dos seus principais problemas do capitalismo atual que é a crise da reprodução social.
Essa situação pode ser observada em alguns aspectos: aprofundamento da crise da reprodução, ou seja, do modo como o trabalho do cuidado é organizado e distribuído na sociedade capitalista; uma agudização da violência de gênero, que ao defender o isolamento social e a casa como o lugar seguro, não foi capaz de garantir mecanismos eficazes para milhares de mulheres (e crianças) em seus próprios lares; um recuo do movimento feminista, que vinha se mostrando um dos poucos capazes de reagir ao tipo de neoliberalismo predatório que se instalou na última década. Refiro-me aqui ao que Arruza, Bhattacharya e Fraser (2019) denominam de uma das variantes do neoliberalismo, a reacionária, que se alimenta de tropas e milícias misóginas e racistas para, supostamente, defender os interesses “da maioria” ( maioria que se autodenomina como cidadãos de bem ou homens comuns)[3]3. Pois, diante do isolamento social, esse movimento que, desde 2015 vinha tomando as ruas do mundo, arrefeceu e é urgente que, neste ano, havendo uma melhora das condições sanitárias, ele volte à cena.
A pandemia mostrou que a crise do capitalismo não é apenas financeira ou industrial, mas, como diversas teóricas feministas vem debatendo, vivemos uma crise da reprodução, uma crise do cuidado. A reprodução social é uma dimensão fundamental para o funcionamento das sociedades capitalistas. Como afirma o livro Feminismo para os 99%: um manifesto, por trás das instituições oficiais do capitalismo (trabalho assalariado, produção, troca de mercadorias e sistema financeiro) é preciso um trabalho (invisibilizado ) que dá suporte ao sistema.
Já pensamos em calcular qual é o tempo de trabalho necessário para gestar uma vida, garantir que essa vida cresça e se torne autônoma? E os cuidados com os velhos da nossa sociedade, aqueles e aquelas que já não possuem autossuficiência? A maior parte deste trabalho é realizado por mulheres da célula familiar. Ou por mulheres de grupos sociais a quem o trabalho de reprodução é terceirizado. É um labor extenuante e socialmente essencial. Mas o patriarcado capitalista não lhe confere valor. Mesmo que ao longo do século XX tenhamos assistido a uma transformação do trabalho reprodutivo em mercadoria, com o desenvolvimento de uma verdadeira indústria (a indústria alimentícia voltada a bebês é um exemplo disso), o ato de cuidar permanece sendo executado por mulheres e socialmente desvalorizado.
Importante salientar que a reprodução social está ligada a um modelo de divisão sexual, social e racial do trabalho, uma vez que depende, sobretudo, da mão de obra de mulheres, especialmente aquelas ligadas a comunidades racializadas. É assim que, em países como o Brasil, mulheres negras representam cerca de 90% da força de trabalho doméstico. Nos Estados Unidos e em vários países da Europa esse trabalho é feito por mulheres migrantes, as “mujeres de color” como as denominou a escritora chicana Gloria Anzaldúa.[4]4
As mobilizações feministas têm denunciado, não de hoje, um esgotamento das capacidades sociais de exercer o cuidado. Mulheres provedoras, que atuam em longas jornadas, terceirizam os trabalhos de cuidados para outras mulheres que, por sua vez, também precisam atuar como cuidadoras em suas famílias e comunidades. De acordo com as reflexões da historiadora Silvia Federici (2019), ao longo da segunda metade do século XX, o aumento da empregabilidade feminina, da expectativa de vida, os processos de urbanização/gentrificação dos bairros têm provocado um esgaçamento dos modos de vida comunitários, pautados em redes de apoio e solidariedade.[5]5 O cuidado com a produção e reprodução de vida deixou de ser uma atividade coletiva, vinculada a redes de apoio mútuo, para se transformar, cada vez mais, em um trabalho precário que recai sob os ombros solitários das mulheres. Na mesma direção, Cinzia Arruza, Tithi Bhattacharya e Nancy Fraser(2019) salientam que: “quando uma sociedade retira a sustentação pública à reprodução social e engaja suas principais provedoras em longas e cansativas jornadas de trabalho mal remunerado, ela esgota as próprias capacidades sociais de que depende” .(2019, p.111)
De 2015 até o começo de 2020 assistimos ao florescimento de um movimento feminista vigoroso em diversos países. Para ficarmos apenas em nosso continente: movimentos como o Ni una a menos / Aborto legal (Argentina); El violador eres tu (Chile); greves feministas (2017/2018/2019) em vários países; Ele não (Brasil), Marcha das Mulheres Negras (Brasil); Marcha das Mulheres indígenas (Brasil); Tais mobilizações têm se debruçado sobre estes temas relacionados ao modo como a sociedade exerce o controle dos corpos femininos, através de políticas conservadoras em relação aos direitos sexuais e reprodutivos e manutenção de uma divisão social, sexual e racial do trabalho. Neste debate, a violência de gênero, que funciona como uma pandemia silenciosa, matando milhares de mulheres em todo o mundo, ocupa um lugar central. Ela é um dos principais mecanismos de controle, operando para perpetuar a função social da reprodução que a sociedade patriarcal e heterenormativa atribui às mulheres.
Com a Covid-19, o isolamento foi apresentado como um dos poucos paliativos disponíveis para diminuir o contágio. A casa passou a ser defendida como único lugar seguro. Para quem? Segundo dados do Observatório da Igualdade de Gênero da América Latina e do Caribe, vinculado à CEPAL, em 2018 ao menos 2.795 mulheres foram vítimas de feminicídio em 23 países da América Latina e do Caribe.[6]6 A antropóloga Rita Segato tem se referido à violência contra as mulheres como uma guerra, talvez a guerra mais longa, uma vez que podemos encontrar vestígios desta prática em diferentes tempos e sociedades.[7]7 Mas então cabe indagar: como este tema se relaciona com um caráter patriarcal da atual pandemia? Trago aqui alguns exemplos. A ONU mulher, em comunicado recente, alertou para a situação de perigo de mulheres migrantes e refugiadas na América Latina. Com a pandemia, aumentaram os riscos à violência sexual, gravidez indesejada e exposição a DST’s. Em algumas fronteiras do nosso continente essas mulheres têm sido vítimas de grupos paramilitares que atuam no crime organizado. As mulheres, obrigadas a se mover e distantes das suas comunidades, sem qualquer proteção do estado, têm sido vitimadas através de atos sistemáticos de violência sexual. Vemos, portanto, um tipo de violência de gênero que não é intradomiciliar mas que exerce, igualmente, uma função de controle e disciplina sobre os corpos femininos.
Voltemos agora nosso olhar para outra modalidade de violência: dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública de 2019 indicam que a casa é o lugar mais perigoso para as mulheres: 42% das agressões físicas registradas contra mulheres ocorreram em casa, seguidas de 29% que aconteceram na rua; 8% no local de trabalho; 8% na internet e 3% em bares/baladas; ´65% dos feminicídios praticados em 2017 e 2018 aconteceram dentro da casa.[8]8 Evidencia-se que, no caso brasileiro, a violência de gênero está associada a uma relação de vínculo com o agressor que é, na maioria das vezes, companheiro ou ex-companheiro.
Tanto no caso das violências cometidas por grupos quanto a que ocorre no espaço doméstico nos deparamos com a situação de que mais de 90% dos agressores são homens. Mas um feminismo anticapitalista precisa ir além desta constatação e se perguntar qual o papel que os homens estão exercendo dentro deste sistema. Sendo assim, faz muito sentido a análise de Rita Segato(2016) quando ela aponta que a violência compõe uma série de práticas relacionadas à atribuição de um mandato de masculinidade. Ou seja, faz parte do reconhecimento social do homem ser aprovado por seus pares e o recurso à violência contra mulheres e meninas é uma das formas de conquistar esse reconhecimento. Para a Rita Segato, a violência de gênero tem uma associação direta com o patriarcado, considerando “o mandato da masculinidade como primeira e permanente pedagogia de expropriação de valor e dominação”.(SEGATO, p.16)
No caso do Brasil, a pandemia agravou este quadro, registrando-se, de acordo com notícias amplamente veiculadas na imprensa, um aumento de 22% nos casos de feminicídios ao longo do primeiro semestre de 2020 em relação ao mesmo período do ano passado. No Rio Grande do Sul, esse aumento foi de 24%. Foram 51 assassinatos até junho motivados pela misoginia: essas pessoas tiveram suas vidas arrancadas apenas pelo fato de serem mulheres. Em alguns Estados o aumento foi ainda mais assustador: Pará registrou um aumento de 100%, Acre 300%. Esses territórios não figuravam entre os mais violentos do Brasil e assistiram a uma escalada de feminicídios. O que indica que, em tempos de crise, recrudescem os mecanismos de controle sobre as mulheres que, em consequência, têm suas vidas ainda mais precarizadas.
Quando olhamos para essas informações sobre violência e feminicídios vale ressaltar que não são somente marcadas pelo gênero, mas diretamente associados à raça/cor e à classe social: 61% das vítimas de feminicídios são mulheres negras; 70% das vítimas cursaram até o ensino fundamental. Portanto, se a violência atinge a todas as mulheres, compreendê-la exige examinar um conjunto de intersecções de gênero, raça e classe social. Há uma correlação entre o tema da violência e da reprodução, uma vez que a violência de gênero atinge em proporção maiores a mulheres que, devido à intersecção entre gênero, classe e raça, desempenham as funções de principais “cuidadoras” da sociedade. Este aspecto é fundamental para entender como opera a pandemia do patriarcado. Em um momento no qual o espaço doméstico via isolamento social se torna o refúgio possível, há uma imensa massa de mulheres que ou não puderam aderir ao “fica em casa” ou, permanecer em casa significava um risco à vida. Fica a pergunta: quem cuida de quem cuida?
Muito já se falou sobre o caso, mas vale lembrar quem foi a primeira vítima da Covid-19 registrada no Brasil. Ela se chamava Cleonice, tinha 63 anos, era uma mulher negra, moradora da região de Miguel Pereira, no Rio de Janeiro. Todas as semanas, ela viajava 120 km, usando 3 transportes púbicos, para chegar ao seu emprego no bairro Leblon, onde trabalhava como empregada doméstica. Ela ficava na casa dos seus patrões durante toda a semana. No começo de março deste ano, seus patrões voltaram de uma viajem à Itália e, mesmo com as notícias do vírus circulando amplamente, não dispensaram Cleonice. Diabética e hipertensa, ela trabalhava como doméstica desde os 13 anos mas ainda não tinha tempo de contribuição suficiente para requisitar a aposentadoria. Seus patrões testaram positivo para a Covid-19, notícia que, segundo o sobrinho da Cleonice, chegou ao hospital público de Miguel Pereira 3 horas antes dela vir a falecer. A história de Cleonice sintetiza como a pandemia do coronavírus tornou visível a crise da reprodução do atual modelo de sociedade. Com sua idade e a saúde já comprometida, Cleonice representa uma das tantas mulheres negras, pobres e periféricas que tem sua força de trabalho explorada até a exaustão ou a morte, para garantir as condições de reprodução da vida às famílias abastadas.
Nas últimas décadas, a expansão do trabalho feminino para profissões socialmente reconhecidas aconteceu graças à possibilidade de transformar o trabalho reprodutivo em uma mercadoria. Nas classes médias e altas a mulher dona de casa em tempo integral - como muito bem aponta Silva Federici em um texto intitulado A construção da dona de casa e do trabalho doméstico na Inglaterra dos séculos XIX e XX - foi uma criação relativamente recente, resultado de uma grande engenharia social que transformou as fábricas, a comunidade e o lar e, sobretudo, a posição social das mulheres. Ao longo da segunda metade do século XX surgiu a figura da “mulher moderna”, branca, urbana e escolarizada, que consegue exercer profissões socialmente valorizadas a partir da terceirização do trabalho doméstico para outras mulheres (pobres, racializadas, de baixa escolaridade).
Com a pandemia e a necessidade de isolamento, esse arranjo social não foi abalado. Dentro da estrutura classista/patriarcal/racista, as elites não cogitam abrir mão do trabalho doméstico “terceirizado”. O esgaçamento das políticas sociais contribui para que mulheres como Cleonice, que não contam com previdência ou qualquer outro tipo de auxílio, se vissem obrigadas a seguir trabalhando arriscando a própria vida. Mulheres pobres, em sua maioria negras, além de continuar exercendo os trabalhos mal remunerados ligados à reprodução, e colocar a saúde em risco, também precisam, muitas vezes, voltar para casa e executar, desta vez, os cuidados relacionados à sua vida e de seus próprios familiares. Essa é uma realidade vivida por milhares de mulheres com jornadas de trabalho desumanas. É uma conta que não fecha, porque essas mulheres, principais cuidadoras sociais, não têm quem as cuide e, portanto, suas vidas e das suas famílias se tornam, cada vez mais, vidas desprovidas de condições dignas de existência. Evidente que se trata de um sistema que tende a, cada vez mais, precarizar as condições de reprodução da vida e dos cuidados para a imensa maioria da população. Estas questões não são novidade, em especial para as pensadoras que teorizaram sobre as relações raciais e de gênero no Brasil. Em artigo originalmente publicado nos anos 1990, a cientista social Luiza Bairros, analisava as características do sistema patriarcal racista brasileiro, salientando que “o que se espera das domésticas é que cuidem do bem-estar dos outros, que até desenvolvam laços afetivos com os que dela precisam sem no entanto deixarem de ser trabalhadoras economicamente exploradas”.(2020, p.213).[9]9 Ou seja, é uma relação onde a dedicação e o cuidado é uma via de mão única, exigida apenas das trabalhadoras. De novo, quem cuida dessas cuidadoras?
O exemplo mais triste e revoltante que tivemos a esse respeito foi a morte do menino Miguel, no Recife. Com apenas 5 anos, a mãe do Miguel, Mirtes, não tinha com quem deixar seu filho, já que as escolas (que funcionam como importante rede de apoio na organização do trabalho reprodutivo) estão fechadas. Mirtes levou o pequeno Miguel para seu trabalho. Lá, entre outros afazeres ligados aos cuidados, Mirtes precisava levar o cachorro de sua patroa para passear. O fim da história todos conhecemos. O pequeno Miguel foi deixado sozinho em um elevador pela patroa Sari Corte Real. Acabou caindo do 9º andar do edifício e morreu. Mirtes está vivendo a dor irreparável de perder um filho que, na ótica da sua patroa, não era uma criança merecedora de cuidados. Repito a pergunta? Quem cuida de quem? Quem cuida dos filhos e filhas das mulheres pobres, negras, das imigrantes, das “mujeres de color” que realizam cotidianamente o trabalho de cuidado em todo o mundo? Este problema não é novidade. Na ausência das poucas redes de apoio com as quais as mulheres ainda contavam - a pandemia colocou sob holofotes a centralidade do trabalho reprodutivo, a desigualdade brutal da sua distribuição e a incapacidade do atual modelo de sociedade de garantir condições de cuidado e vida dignas para todos e todas. Qual a saída?
O feminismo anticapitalista aponta para uma possibilidade de confrontar esta pandemia patriarcal. Se formos capazes de rechaçar as alternativas liberais que, até o momento, permitiram apenas a uma pequena parcela das chamadas minorias políticas uma ilusão de reconhecimento e igualdade, podemos construir alternativas que passam necessariamente, por rever um sistema que depende do controle dos corpos femininos (em especial pobres e racializados) e seu uso para a manutenção da reprodução social. Portanto, meu ponto, neste texto, é que a pandemia expôs de modo mais concreto como a distribuição hierárquica e desigual do trabalho reprodutivo é um dos problemas centrais do sistema capitalista.
Em junho de 2020, a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD Contínua) constatou que a pandemia retirou 7 milhões de mulheres do mercado de trabalho somente no primeiro trimestre de 2020. O crescimento do desemprego entre as mulheres foi 25% superior ao dos homens. A que se deve este processo? Historicamente, mulheres ocupam empregos mais precários, portanto, mais facilmente demissíveis, enfrentam maiores dificuldades tanto para conseguir uma vaga quanto para se manterem empregadas, situação diretamente vinculada à função social do “cuidado” que acumulam. Outro dado que mostra esse caráter de desvalorização do trabalho do cuidado: a taxa da população ocupada (geral) apresentou uma queda de 3,4%. Mas entre as empregadas domésticas essa taxa foi de 10%. Isso mostra que boa parte da classe média e alta brasileira, na hora de reorganizar a vida na quarentena, dispensou aquelas pessoas que eram “quase da família” para que ficassem em casa, só que sem salário. De novo, a pergunta: quem cuida de quem?
Procurei assinalar, ao longo deste texto, que a pandemia trouxe à luz uma crise do cuidado que não pode ser resolvida dentro dos moldes do capitalismo patriarcal. As alternativas a este processo não passam por soluções individuais como propõe o feminismo do “empodere-se”. Nem tampouco por leituras simplistas que opõem políticas de classe x políticas identitárias. Ao examinar o trabalho reprodutivo, percebemos que ele é fundamentalmente realizado por mulheres inseridas em um sistema heteronormativo, mulheres pobres, cujos corpos são racializados.
Os efeitos da pandemia patriarcal, que não será resolvido com uma vacina, e que vem há séculos extenuando a capacidade física e mental das mulheres, podem ser enfrentados através de uma política feminista que coloque em xeque a dinâmica da organização social do trabalho dentro do sistema capitalista. Para tanto, o feminismo precisa se reencontrar com a perspectiva anticapitalista, antirracista e decolonial, o que só pode ser feito através da busca de uma agenda que, escutando as características das lutas e grupos diversos, seja capaz de traçar caminhos coletivos para as mobilizações das mulheres, em todo o mundo. Fazendo minhas as palavras da ativista boliviana María Galindo: precisamos confrontar o sistema através de um movimento que seja, de fato, indigesto ao patriarcado.
Natalia Pietra Méndez é Professora da UFRGS, historiadora e feminista.
Notas:
[1] A primeira versão deste texto foi apresentada em julho de 2020 no XV Encontro Estadual da ANPUH RS: História & Resistências. [2] GORDON, Rebeca. O futuro pode ser feminino, mas a pandemia é patriarcal. Disponível em: https://aterraeredonda.com.br/o-futuro-pode-ser-feminino-mas-a-pandemia-e-patriarcal/ [3] ARRUZA; BHATTACHARYA; FRASER. Feminismo para os 99%. São Paulo: Boitempo, 2019. [4] ANZALDÚA, Gloria E. Falando em línguas: uma carta para as mulheres escritoras do Terceiro Mundo (1981). Revista Estudos Feministas, vol 8, n. 1, 2000. Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/ref/article/view/9880 [5] FEDERICI, Silvia. O ponto zero da revolução: trabalho doméstico, reprodução e luta feminista. São Paulo: Editora Elefante, 2019. [6] Fonte: https://oig.cepal.org/pt/indicadores/feminicidio-ou-femicidio [7] SEGATO, Rita. La guerra contra las mujeres. Madrid: Traficante de Sueños, 2016. [8] Fonte: https://forumseguranca.org.br/atlas-da-violencia/ [9] BAIRROS, Luiza. Nossos feminismos revisitados. In: HOLLANDA, Heloísa Buarque de. Pensamento feminista hoje: perspectivas decoloniais. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2020.