por Jorge Branco (*)
“O mundo não dá voltas, capota!” Quantas vezes ouvimos essa expressão?
Em grande parte, podemos reconhecer a pertinência desta assertiva, ao menos no que diz respeito aos fatos da política, aos fatos do Estado, em especial quando falamos de ações secretas, do mundo do segredo, do clandestino e, abertamente, da ilicitude. Ela diz respeito à surpresa, ao surpreendente, ao inesperado. De outra parte, se observarmos, ou pudermos observar, os processos através dos quais se criam as condições necessárias e estas convergem até se transformarem em condições suficientes para uma mudança, não deveríamos nos surpreender.
Desde as revelações feitas, principalmente pelo The Intercept Brasil[1], se poderia prever que as declarações sistemáticas de Lula denunciando a Operação Lava Jato como law fare e como uma operação política. Desde então, com a certificação de que os vazamentos tratavam de diálogos efetivamente realizados[2], já se poderia imaginar que o crime perfeito da Lava Jato começaria a se desmanchar.
A culminância desta “capotagem” se deu nesta semana passada entre 08 e 10 de março com as decisões no âmbito do STF dando conta das ilegalidades das ações penais envolvendo a Lava Jato e seus julgamentos.
A constatação de que houve irregularidades no processo judicial contra Lula e a grave crise sanitária, que já assume dimensões de crise humanitária, convergiram para uma espécie de rompimento do transe que alguns setores do país haviam mergulhado em relação às atrocidades cometidas por Bolsonaro.
Os primeiros sinais relevantes de fissuras no bloco de apoio a Bolsonaro estão a surgir. Ainda que a política fiscal e financeira tenha sido terceirizada ao “mercado financeiro”, interlocutores do capital rentista como Armínio Franga, Gustavo Loyola ou Mark Mobius abertamente passaram a criticar a política de Bolsonaro e fazem gestos em direção a um novo arco de alianças que pode gerar novo bloco no poder. Obviamente com eles como fração hegemônica.
A estratégia de campanha de Bolsonaro aplicada no próprio governo durante o ano de 2019, manteve sua base política mobilizada e na ofensiva baseada pauta reacionária nos costumes e antidemocrática na política pode perder fôlego. Ao longo de 2020, contudo, a incapacidade de reverter a crise e o desemprego e a política genocida e austericida com a qual pretendeu atravessar a pandemia da Covid corroeram grande parte de seu apoio, entre os trabalhadores e inclusive no Congresso. As vitórias do “Centrão” nas mesas da Câmara Federal e do Senado foram importantes para Bolsonaro ao impedir que a presidência do parlamento caísse nas mãos da oposição, mas lhe custaram uma dependência em relação à direita conservadora tradicional, lhe retirando grande parte da iniciativa política. Foi uma vitória no plano tático mas é possível projetar que, no médio prazo, isso possa significar um problema não desejado para Bolsonaro.
É preciso considerar que a extrema direita e a pequena burguesia, bases relevantes do bolsonarismo, ainda possuem força política suficiente para tentar manter a coesão desse bloco no poder através de movimentos extra democráticos, buscando reverter a tendência de condenação de Moro e absolvição de Lula, ampliando as ameaças golpistas com apoio das frações fascistas das forças armadas e da base das polícias e milicianos. Uma tentativa deste tipo, entretanto, pode resultar no inverso, com a criação das condições para o impeachment de Bolsonaro.
O reposicionamento de Lula à frente da política de oposição e como o mais viável candidato anti-Bolsonaro pode estabelecer a movimentação de setores da burguesia em torno de um plano de governo de salvação sanitária, de recuperação do emprego e da estabilidade econômica do país. A tradição da política do próprio Lula indica grande tendência para liderar um arco de alianças de centro e de centro-esquerda no país. Com impeachment ou no calendário de 2022.
Esse possível bloco teria grande capacidade de frear a escalada de crescimento do reacionarismo e do fascismo no país, além da devida tarefa humanitária de reversão da catástrofe sanitária em curso.
Certamente que o ambiente de reestabelecimento de padrões democráticos e o descredenciamento da retórica fascista, criam melhores condições para que as classes trabalhadoras, a juventude e os movimentos sociais possam reconquistar direitos, reconstruir políticas públicas distributivistas e enfrentar a razão austericida. Contudo se não houver a construção de uma plataforma de reformas populares e democráticas radicais, os trabalhadores já serão derrotados antes mesmo da derrota de Bolsonaro.
A esquerda e as organizações populares precisarão produzir uma estratégia de tensão à esquerda em relação a esse bloco com base numa unidade de ação e de programa: uma frente de esquerda que empurre esta grande frente ampla de oposição para posições de superação do austericídio neoliberal e dos elementos autoritários, tais como a suspensão da autonomia do BC, o reestabelecimento do multilateralismo e altivez na política externa, um grande programa de retomada do emprego, de garantia de renda básica, de apoio à agricultura camponesa sustentável e de fortalecimento da educação pública e do sistema único de saúde. Elementos já constantes de um modo ou outro nos governos Lula e Dilma.
Mas deverá, principalmente, avançar para propostas que não estiveram na pauta dos governos lulistas. Como uma reforma democrática do Estado, a reforma do sistema político, das comunicações, do sistema tributário/financeiro e da reforma agrária. Todos no sentido de distribuir poder, propriedade e renda.
O que precisa ser aprendido das experiências concretas vividas, como a redemocratização, os governos lulistas e o processo golpista de 2016/2018, é que a esquerda deve saber fazer as mediações táticas, sem contudo abdicar das propostas estratégicas. Este novo ciclo da luta de classes e da política brasileira não se encerra nos objetivos imediatos de derrotar Bolsonaro e cessar a destruição de direitos e da soberania nacional. Será preciso concluir a transição para uma economia igualitarista radical e eliminar os mecanismos que permitam as iniciativas golpistas, antidemocráticas. O processo golpista precisa ser concluído com a punição dos responsáveis pelos crimes contra o Estado Democrático de Direito, contra a humanidade e contra a soberania nacional.
(*) Jorge Branco é Sociólogo, Mestre em Ciência Política. Diretor Executivo do Democracia e Direitos Fundamentais
[1] DUARTE, Letícia. Vaza Jato: os bastidores das reportagens que sacudiram o Brasil. Rio de Janeiro: ed Mórula, 2020. [2] https://www.brasildefato.com.br/2021/02/10/spoofing-o-tiro-no-pe-de-moro-e-no-coracao-da-lava-jato