ESQUINA MAIS DE UM MILHÃO, POR NORA PRADO (*)
- Alexandre Costa
- 28 de jan. de 2022
- 4 min de leitura

Nesta semana fui com meu filho, Aramis, assistir ao Show Clube da Esquina Tributo RS na programação do Porto Verão Alegre e com a chancela luxuosa de Deborah Finocchiaro e Roger Lerina que pousaram o Sarau Voador no Instituto Ling. Assim como eu, meu filho adora as canções de Milton Nascimento e estava ansioso para que este dia chegasse. Ele sabia que seria um outro grupo interpretando as músicas do mestre, mas não tinha importância. A banda incompleta, por razões alheias à sua vontade, deu um show de talento e competência com a voz e violão do Alemão Jef, contrabaixo de Daniel Vlacic e bateria de Rainer Eteiner num passeio pelo Clube da Esquina, disco antológico realizado por aquela turma de mineiros geniais no começo da década de setenta e que neste ano completa 50 anos do seu lançamento.
Realizado no salão de baixo, com o devido distanciamento e os protocolos necessários, com a vista ampla para o belo jardim do Ling ao fundo, o show contou com as letras ditas por Deborah, Roger e a banda, que alternavam as canções com trechos de livros no qual os seus autores revelam detalhes preciosos desta época mágica. Uma verdadeira viagem astral para quem, como eu, teve a sorte de ouvir essas belezas na flor da juventude. Reviver essas emoções foi algo comovente, não só por deixar vir à tona tantas memórias essenciais, como também perceber a força poética das letras, a beleza das melodias e os arranjos fabulosos que seguem frescos e atuais como se tivessem sido feitos hoje. Prova disso é a alegria com que o Aramis reconheceu, antes de mim, a canção Cais, música tema de abertura da novela Nos Tempos do Imperador.
Clube da Esquina se tornou um clássico da MPB que encanta veteranos e novatos com igual intensidade. O disco foi tão bem recebido pelo público e crítica na época, que, anos depois, Milton Nascimento, o maior expoente desse rico e potente grupo de músicos, fez questão de voltar à fonte da sua esquina profética promovendo um reencontro com vários parceiros, mas agregando novos músicos e intérpretes num poderoso caldeirão de influências que resultou no genial Clube da Esquina 2. Esse formidável álbum duplo caiu nas graças da minha geração e de quem já era fã de Milton, Lô e Marcio Borges, Beto Guedes, Fernando Brant e o pessoal da esquina mais fértil do Brasil. Com a participação de Elis Regina e Joice, Violeta Parra e Mercedes Soza, além do Grupo Tacuabé, o álbum destila invenção, harmonias inusitadas e um frescor divino através de suas letras e melodias inesquecíveis. Um trabalho esmerado feito entre compositores, intérpretes e músicos amigos numa camaradagem fora do comum e unidos através do espírito da liberdade. O Brasil e a América Latina ainda viviam sob as nuvens sombrias da ditadura militar, mas o regime já dava sinais de esgotamento e o disco manifesta este anseio por mudança e a volta a um estado democrático de direito que não tardaria a chegar.
Lembro-me perfeitamente da primeira vez que escutei o disco, completo, na casa da mãe da minha amiga, Carla Pernambuco, no bairro da Bela Vista depois de uma noite de ensaio do espetáculo infanto-juvenil O Gato Malhado e Andorinha Sinhá, Uma História de Amor, do Jorge Amado. A peça era dirigida pelo Léo Ferlauto, músico e ator com quem eu namorava e estava absolutamente apaixonada. Enquanto a trilha musical se desenrolava na vitrola a gente se atirava nos sofás do amplo apartamento, depois do jantar, e ficava embevecida com a qualidade de cada faixa como a paisagem entrando esplendorosa pela noite quente de verão. Eu e o Léo, no maior amasso, tivemos a nossa trilha particular abençoando o romance que nascia naquele janeiro de 1979. Passamos outras noites e madrugadas adentro passamos escutando essa joia musical. Lembro-me especialmente de um amanhecer que fez mais sentido ainda ao escutar, Nascente, segunda faixa do disco 1, e que até hoje é difícil que eu não chore como naquela vez.
Alguns anos depois assisti, mais de uma vez, um espetáculo de dança de um grupo mineiro com a trilha deste disco e cuja canção Maria Maria era pura apoteose numa comoção geral. O canto fascinante e a natureza escorpionina de Milton Nascimento tem esse poder de nos arrebatar para as zonas profundas da nossa psique num mergulho intenso e revelador. Acredito que por conta disso a sua obra permaneça com uma atualidade inconteste, até hoje, e conquistando novos fãs.
Na saída compramos o CD do show para escutarmos no carro e, pela manhã no dia seguinte, ouvimos os originais. Que prazer apresentar em maior profundidade a obra deste artista e os seus pares maravilhosos para o meu filho que ama música e poesia.
Não deve ser por acaso que no aniversário de 50 anos do Clube da Esquina sua mensagem de esperança e “fé faca amolada” sigam mais vivas do que nunca, talvez para nos lembrar que ainda restam cadáveres e dinossauros insepultos da ditadura militar que seguem impunes no planalto central. Talvez para nos avisar que seremos mais de um milhão pelas ruas e esquinas do país no dia que este demônio que nos desgoverna sair da presidência e um novo tempo se abrir em flor.
Talvez para nos lembrar de que caminhando pela noite de nossa cidade, acendendo a esperança e apagando a escuridão. Vamos caminhando pelas ruas de nossa cidade Viver, derramando a juventude pelos corações Tenha fé no nosso povo que ele resiste Tenha fé no nosso povo que ele insiste E acordar novo, forte, alegre, cheio de paixão
Vamos, caminhando de mãos dadas com a alma nova Viver semeando a liberdade em cada coração Tenha fé no nosso povo que ele acorda Tenha fé no nosso povo que ele assusta
Caminhando e vivendo com a alma aberta Aquecidos pelo sol que vem depois do temporal Vamos, companheiros pelas ruas de nossa cidade Cantar semeando um sonho que vai ter de ser real Caminhemos pela noite com a esperança Caminhemos pela noite com a juventude
Porto alegre, 28 de janeiro de 2022.
*Tomei a liberdade de encerrar minha crônica com os versos de Credo, de Milton Nascimento e Fernando Brant.
(*) Nora Prado é atriz, poeta, professora de interpretação para Teatro e Cinema, atuou na Escola das Artes do Palco - SP.