Confira abaixo o artigo Emancipação Humana, escrito pelo médico psiquiatra Bruno Mendonça Costa.

Retiro o título do texto de K. Marx (Manuscritos Econômico-filosóficos – Ed. Martin Claret, 2.001). Vejamos, de início, indo aos dicionários, o que se pode compreender como “emancipação”. É “a ação de ser ou se tornar independente, livre. Aplica-se em muitas situações: emancipação de menor, da mulher, política, luta por direitos políticos, por igualdade, direitos de cidadania”. De especial interesse é a emancipação política. Ela tanto pode ser individual como coletiva. No último caso, por exemplo, a emancipação de um país, da região de um país, de um distrito para tornar-se um município. Karl Marx publicou um ensaio em 1.844 a respeito da “emancipação política” dos judeus na Alemanha da época, que teve o título de “a questão judaica”. Em síntese para ele “a emancipação política do judeu ou do cristão estava relacionada a uma emancipação do Estado com relação ao Judaísmo, ao Cristianismo ou a emancipação do Estado com relação a qualquer religião”. Importante também a emancipação que diz respeito às mulheres: a igualdade de gêneros, os direitos iguais para homens e mulheres, o direito ao voto.
O presente texto diz respeito, então, à conquista do homem pela emancipação humana. Não se trata de discutir o texto de Marx, mas sim de tomá-lo como inspiração para se discutir a época atual do mundo e, em especial, a do Brasil. Como ficou claro, Marx abordou o tema ao discutir uma publicação de Bruno Bauer sobre a situação dos judeus na Alemanha daquela época. A situação atual, século XXI, é diferente quanto a isso. Mas é de lembrar o sofrimento dos judeus na 2ª Guerra Mundial, o holocausto, a quantidade de mortos, de judeus, de russos e de cidadãos das diversas nações envolvidas naquele conflito. Milhões de mortos; enfim, o sofrimento de todos os povos do mundo de então em consequência do nazi-fascismo. No entanto, apesar de um exemplo tão monstruoso, eis que surgem no nosso “mundo moderno”, países cujos lideres, eleitos ou com poderes conquistados manu militari, pregam e desejam impor sistemas muito semelhantes aos de Hitler e de Mussolini. Toda uma luta de conquistas democráticas são simplesmente jogadas no lixo, com o apoio de seguidores fanáticos em quantidades maiores ou menores.
Portanto, a emancipação de que trata o presente texto, não tem como foco o judeu, mas sim todos os personagens supostamente considerados excluídos ou discriminados no mundo inteiro, seja em países altamente desenvolvidos, como os EE. UU., ou abjetamente pobres com exemplos em todos os continentes. Não há necessidade de enfocar detalhes com referência a cada nação, povo ou regiões, como judeus, negros, analfabetos, mulheres, homossexuais, trabalhador escravo, doente mental, nem de destacar aspectos individuais sobre o modo de pensar de cada um destes personagens. O objetivo é de tratar do tema de uma forma genérica, englobando todos os personagens referidos, dentro de uma visão coletiva, enfatizando a importância do aspecto social, sem deixar de lado a importância dos aspectos individuais, individualistas ou mesmos egoístas de cada ser humano. Na verdade, o objetivo é alcançar o coletivo, no sentido de pensar em todos, destacando que a emancipação deverá ter por meta a sociedade inteira, com vistas à transformação do homem singular. A força social, desta maneira, modificará o indivíduo. Advirta-se, desde logo, que a força social de uma trajetória civilizatória superior, ela própria uma conquista realizada através de uma luta social.
Se algum destaque deva ser feito, é justamente com relação à luta social. É a convocação para esta luta por parte de todos os indivíduos que compõe o tecido social, sejam eles quem forem. Neste sentido, nem se pode também enfatizar esta ou aquela ideologia, pois a ideologia que cabe é a de que o homem, como tal, é tem capacidade de atingir um determinado grau de aperfeiçoamento individual que compreenda que um futuro melhor é possível, desde que a emancipação seja uma meta a ser alcançada. Portanto, se é uma meta, supõe-se que ela seja planejada.
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Partimos, então, do homem concreto, aquele que vive o dia-a-dia com todos os seus obstáculos, dificuldades, carências diversas, que o coloca num nível muito abaixo daquele que se presume possa alcançar o homem livre do futuro. Este, sem nenhuma dúvida, não existe concretamente. Poderá ser considerado por muitos como uma utopia ou até mesmo como algo inalcançável, considerando os instintos próprios dos seres humanos. Ou seja, desde logo, haverá uma visão otimista com relação ao futuro e, em oposição, uma visão pessimista.
A visão pessimista não pode prevalecer. E forçosamente não prevalecerá, pois se observa que apesar do imenso número de (maus) exemplos, a humanidade apresenta progressos indubitáveis em diferentes áreas. É um progresso variável, as vezes lento, as vezes mais rápido, mas ele pode ser enumerado e demonstrado. Ele é produto de dois fatores indiscutíveis: o desenvolvimento econômico-financeiro, com as diferentes vestimentas do capitalismo nas várias regiões do mundo, caudatário principalmente do progresso da ciência e da tecnologia, e o avanço do aperfeiçoamento das organizações sociais, sob a forma de instituições, tais como as ONGs, funcionamento de empresas privadas que guardam ou não compromentimentos sociais, os parlamentos com vários níveis de compreensão política e social, os partidos políticos e suas ideologias, os compromissos sociais por parte dos vários tipos de organizações denominadas de Estados.
Os retrocessos na caminhada civilizatória já não ocorre mais em termos de países isolados, mas, graças à globalização, envolve todos os países, sejam ricos ou pobres. Estes envolvimentos apresentam aspectos positivos e negativos, mas, no balanço final, é difícil que não ocorram balanços positivos para todos. É o que acontece, por exemplo, com relação aos direitos humanos. Enfim, a trajetória pode ser obstaculizada pontual ou eventualmente, mas recobra seu caminho e avança para rumos melhores. Estes avanços e recuos sempre aconteceram nesta trajetória da humanidade, como encontramos inúmeros exemplos em nossas pesquisas da História. Sócrates conseguia demonstrar que respeitava as religiões, mas a solução dos problemas humanos não estava em discussão de deuses e sim em discussão de homens. Foi condenado a morrer justamente porque foi acusado de desacreditar os deuses da época. Era o IV século a. C.
A “emancipação” é vista, assim, como um tema abstrato. Como é abstrato o homem para o qual ela está voltada. O homem concreto do dia-a-dia, vive alienado e nem sequer cogita discutir temas como este. Para ele, que está a procura de sua carência alimentar, é como falar se existem ou não existem anjos.
No entanto, apesar da ignorância que graça em todas as camadas sociais, faz parte do ser humano discutir temas teóricos ou abstratos, pois não deixa de ser uma exigência justamente de sua vida concreta, embora não percebida pela maioria. O homem concreto precisa sobreviver e para isso, não pode dispensar-se de perceber os avanços da tecnologia e da ciência. É o que estamos presenciando em nossa época atual. Ninguém consegue deixar de saber que existe algo que pode salvar vidas, a vacina contra o vírus COVID19. A aceitação por parte da grande maioria, seguramente mais de 80% da população de qualquer país, é uma prova, pelo menos parcial, de que a ciência está prestigiada em nossa época, por inclusive de boa parte da maioria dos religiosos. Mesmo a Igreja Católica, através da palavra de seu representante maior, o Papa Francisco, não apresenta declarações negacionistas ou contra o avanço da ciência. Conclui-se, assim, que a igreja, seja ela qual for, é capaz de ater-se ao seu aspecto individual e individualista, ou mesmo íntimo, de que a religião é algo próprio de cada pessoa, garantida inclusive pela Constituição de 1.988 no Brasil.
Concebe-se a religião como algo que pertence ao direito de cada um, indiscutível até pela legislação e pela nossa Carta Maior. Tal como ela, pode-se conceber os “outros direitos”, como os já referidos anteriormente.
Ora, coloca-se a religião e os demais direitos, como inscritos no item que poderíamos chamar também de individualistas ou egoístas. O que parece uma contradição, surge em nossas abstrações como algo claro e indiscutível. Se reivindico para mim direitos que defendo com muita força e que são prerrogativas daquilo que passo a denominar de “minha liberdade”, defendo-os prioritariamente de forma egoísta. O que serve para mim servirá também para o outro. Mas igualmente será acatado de forma individualista e egoísta. Se o outro, o meu semelhante, não quiser para si este mesmo direito, isso passa a ser um “problema dele” e não “um problema meu”. São decisões singulares, individuais e não coletivas ou sociais. Só são sociais porque abrigam desejos dos homens. Podemos tomar como exemplo, a existência da quantidade de igrejas de todos os tipos que existem hoje no Brasil. Só num mesmo bairro de um balneário muito conhecido de S. C. existem no mínimo 20 diferentes igrejas, cada um delas com um só deus, que é o mesmo Deus da Igreja Católica, mas, é lógico, com pastores que fazem pregações de diferentes teores.
A perspectiva de uma vida melhor para o futuro, simplesmente por participar daquele agrupamento religioso, é, sem dúvida, o traço comum de todas elas, incluindo a própria Igreja católica. Esta perspectiva de uma vida melhor encontra-se no fortalecimento de sua igreja e por hipótese dele próprio, mas aí por meios divinos, ligados ao deus da igreja e ao deus individual.
Ninguém desconhece os aspectos positivos de uma vida social com bons relacionamentos, voltada ao respeito de si próprios e dos outros, das boas intenções com relação ao próximo, das benemerências de instituições religiosas, do indubitável valor das Santas Casas, um exemplo, na área da saúde. Desta forma, as instituições religiosas substituem o Estado em tarefas que competiriam a ele apresentar soluções. Elas aparecem de forma integral ou pelo menos de forma parcial e, assim, tornam-se provas de que as religiões, sejam elas quais forem, tem o seu lado positivo indiscutível. Mas, de modo principal, o objetivo mais profundo é a crença num futuro mágico que pode surgir para cada um, graças à participação no seu agrupamento religioso.
Ora, defendem muitos, se as religiões, ou também as instituições não religiosas, podem resolver os problemas sociais, não há necessidade de que o Estado passe a “perder tempo” na discussão destes problemas e sim se dedique a “outros de maior grandeza”, como por exemplo, a educação e a segurança individual e coletiva. O Estado não só passa a se dedicar a “questões maiores” como deixa também de gastar recursos financeiros em algo que pode ser resolvido por instituições da sociedade civil. Os cidadãos se convencem destas soluções apresentadas e como consequência os problemas continuam e se cronificam e o Estado, indiferente de qual seja o partido político no governo, deixa de exercer o objetivo para o qual existe e foi criado.
Na atual situação de pandemia, o SUS e as providências das instituições estatais, com todas as dificuldades sobejamente apresentadas pelas mídias, incluindo o negacionismo, demonstram que o desastre seria muito maior no Brasil se elas não existissem com seus milhares de dedicados servidores. Se esta situação de pandemia serviu para esse objetivo de demonstração, o mesmo raciocínio serve para demonstrar que o Estado poderá servir para a solução de tantos outros problemas, como a miséria quase absoluta ou a pobreza indigna, a falta de moradias, o desemprego, a carência alimentar, a precariedade física das escolas, a falta de verbas para escolas e universidades, etc.
Não se deve desprezar o valor da contribuição das instituições sociais particulares e das igrejas nos problemas sociais, mas não se deve deixar só para elas a solução dos graves problemas a serem enfrentados. Elas devem ser consideradas como um meio complementar de ajuda. O principal idealizador e executor é o Estado. E jamais, em qualquer hipótese, negar o direito de cada um de ter seu credo particular. Se isso está em nossa lei maior, trata-se de um direito indiscutível.
Mas, se este direito está na lei maior e é indiscutível, devemos também igualmente apresentar a necessidade de tentar soluções por parte do Estado dos outros problemas que se encontram sem solução faz tantos anos. Não discuti-los e não aventar soluções é viver sob o manto da alienação que pode ser conveniente para algumas das religiões existentes ou para pessoas por elas comandadas. Mas a ausência ou a pouca discussão, acaba sendo um grave erro com relação à finalidade do Estado e principalmente do esforço coletivo que deve haver na solução dos problemas sociais.
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Todas estas discussões se inserem no tema da Emancipação Humana.
É evidente que qualquer problema social que examinarmos, exige um tempo variável para ser solucionado. Não existe milagre. O encontro das soluções só pode ser conseguido através da apresentação do problema e das soluções aventadas. Na maior parte dos casos, exigem a presença de técnicos de diferentes áreas. Mas, isso está provado, as soluções podem ser encontradas e dão ótimos resultados. O Estado deve apresentar os projetos através do que denominamos de política.
Jamais estes projetos terão bons resultados se não resultarem do que poderemos denominar de “emancipação política”. Ela é uma etapa anterior a um nível superior que é a “emancipação humana”. Sem ela, nunca chegaremos a esta etapa superior. Emancipação política, que está acompanhada do esforço de fazer desaparecer a “alienação política”, presume é lógico não o afastamento do homem da política e sim, ao contrário, sua aproximação e participação intensa e continuada. Com ela virá o combate também à alienação relacionada à emancipação econômico-financeira, não só em termos de sua sobrevivência individual, mas da sobrevivência digna de todos os membros da sociedade. Ou pensamos na emancipação de todos ou injusta e egoisticamente pensamos na emancipação individualista. E a emancipação de todos obviamente produzirá a emancipação do indivíduo.
Como se vê, a emancipação humana é algo muito difícil de ser alcançado. Difícil, mas não impossível.
Quais os esforços que devem ser feitos para que uma pessoa a alcance?
É uma sequência de esforços. Poderão ser relativamente mais fáceis os passos iniciais. De início surge a questão da sobrevivência, um tema que atinge ricos e pobres. Evidentemente, algo mais fácil para os ricos. Eles já nascem com esta questão resolvida. Seus problemas básicos já estão solucionados. Ou por herança ou por mecanismos construídos por seus pais e que lhe garantem a sobrevivência sem grandes problemas. O pobre, no entanto, vai encontra obstáculos imensos. Mas, quando consegue um título universitário, o universo da sobrevivência já se torna um pouco mais facilitado. São poucos os que chegam neste nível. Quando esta etapa é vitoriosa, o status de rico e de “pobre que venceu” (o que é um título de ingresso na “classe média baixa ou média média”) é mais ou menos semelhante. O difícil mesmo é o que acontece com o pobre que não conseguiu vencer esta etapa e que permanece na mera luta pela sobrevivência. Esta é a situação da maior parte da população de nosso país. Basta assistir atualmente, por exemplo, a procura desesperada de mais de 50% da população adulta pelos chamados “recursos emergenciais”, valores que dificilmente poderão resolver a mais elementar sobrevivência, que é a alimentar.
A emancipação humana tem como objetivo importante a conquista da “liberdade”. Repete-se a consigna da Revolução Francesa (Liberdade, Igualdade, Fraternidade). O rico já conquistou sua liberdade. Pode ser um crente de qualquer igreja, um militante de qualquer partido político, um ser completamente alheio ao que acontece aos seus semelhantes, um cristão sincero que vai na missa todos os domingos e acredita nos rituais de sua igreja, um crítico inconseqüente dos fatos políticos e dos partidos, um ateu fervoroso ou um fanático religioso.
O pobre que subiu para a classe média acompanha sua trajetória. Estes dois personagens não são “homens livres”. Se for um crente está preso aos mandamentos divinos, ao Papa, ao Padre e ao Pastor; se for um ateu, poderá tomar o rumo do anarquismo político, não crê em deus nenhum, passa todo o tempo defendendo seu materialismo, sem se dar conta de que continua tão alienado quanto aquele que optou por alguma crença. Conquistou uma falsa liberdade. Para ser livre, portanto, não basta ser “ateu”. Seu parente próximo, o agnóstico, é igual a ele, e talvez pior, porque finge que acredita no que não acredita e acredita no que finge não acreditar. O ateu não se tornou um “homem livre” e o agnóstico ainda menos do que ele.
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A emancipação política só pode ser conquistada com o combate à alienação. E a alienação é a acompanhante certa do homem individualista e egoísta. É aquele que não se interessa pelos demais homens, não se interessa igualmente pela sociedade em que vive, não compreende o funcionamento de instituições de todos os tipos, não entende o papel dos partidos políticos e do Estado. É de tal modo “independente” que acredita piamente que conquistou um status superior e que prescinde da solidariedade e do convívio com outras pessoas. Julga-se livre e, no entanto, ilude-se com a conquista de uma pseudo-liberdade.
A conquista de uma emancipação econômico-financeira também poderá ser uma falsa conquista. Mas, supondo que de fato esteja presente, ela não lhe dá igualmente o título de “homem livre”, pois na maior parte das vezes estará tão preso aos seus bens materiais e ao seu dinheiro que sua liberdade ou a sua emancipação passa a ser muito mais um preocupação diária e as vezes martirizante do que um prazer de viver. Tal como o crente, tem também um deus, o deus mercado ou o deus dinheiro.
Nem se cogite de falar em fraternidade. Como pode haver um espírito fraterno em alguém individualista e egoísta?
Conclui-se, então, que a “emancipação humana”, aquela que nos apresentará o “homem livre”, vista na época atual, não passa da cogitação de uma utopia. Ela só poderá se apresentar quando a maior parte da população puder compreender o que é alienação e subir vários graus da trajetória civilizatória da humanidade, a ponto de ter a capacidade de saber viver como indivíduo, sem ser individualista e egoísta, e conseguir participar da coletividade, sem com isso, considerar-se alguém diferente ou superior aos demais. Aí, estaremos num mundo de liberdade, de igualdade e de fraternidade, em nível superior, que atinge não mais o “homem abstrato” e sim o homem concreto do dia-a-dia. O homem que se diz livre, mas a todo o momento deve prestar contas a um deus, seja ele qual for, está evidentemente aprisionado a algo misterioso, fora da esfera humana, absoluto, com o qual é impossível discutir e que não lhe concede a opção de caminhos diferentes. Vive num mundo escravizante e anti-democrático.
Como será um mundo sem qualquer tipo de amarras, sem armadilhas de poder, aperfeiçoado em suas instituições privadas e públicas, em que liberdade seja algo de fato existente para um homem concreto e não para abstrações filosóficas ou para homens que não vivem neste mundo terreno?
Minha visão otimista é de que dentro de alguns séculos chegaremos lá. É uma luta que começou com Sócrates no século IV a. C. e que, com muitos avanços e recuos, vem se aperfeiçoando talvez muito lentamente.
(*) Bruno Mendonça Costa é médico psiquiatra.