A reportagem de Vasconcelo Quadros, postada nesta quarta-feira (14/7) no site da Agência Pública de Jornalismo Investigativo, revela que militares teriam levado presos políticos para serem mortos no Araguaia. A matéria foi elaborada a partir do trabalho realizado pela jornalista e pesquisadora Myrian Luiz Alves, que cruzou documentos e informações de filhos de agentes da repressão, que evidenciam que militantes foram transportados e mortos naquela região, em 1974.
Pesquisadora do período da ditadura, a jornalista Myrian Luiz Alves descobriu pistas que podem acrescentar um capítulo escabroso sobre o extermínio da Guerrilha do Araguaia pelo regime militar: desaparecidos políticos que integravam organizações armadas urbanas teriam sido levados clandestinamente para a região e executados juntos com os militantes do PCdoB em 1974. Com base em documentos e no cruzamento de informações de fontes militares, Myrian afirmou à Agência Pública que há fortes evidências de que cinco militantes da Ação Popular Marxista Leninista (APML) tenham sido incluídos numa viagem sem volta do Rio de Janeiro a Marabá. Ela sustenta que um deles é o ex-presidente da União Nacional de Estudantes (UNE), Honestino Guimarães. Outras vítimas do mesmo esquema seriam o funcionário público Fernando Santa Cruz de Oliveira, pai do atual presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Felipe Santa Cruz, na época com 2 anos de idade, e seu amigo de infância e companheiro de militância, o estudante de Direito Eduardo Collier Filho.
Os documentos do período informam que Santa Cruz e Collier Filho foram presos no dia 23 de fevereiro de 1974 em Copacabana, no Rio de Janeiro, e levados para São Paulo – dois dias depois familiares confirmaram a presença deles na sede do II Exército, na capital paulista. Honestino Guimarães também foi preso no Rio, quatro meses antes, em 10 de outubro de 1973, e transferido para Brasília. O silêncio das Forças Armadas que, quase meio século depois, se recusam a abrir oficialmente seus arquivos, tornou a Guerrilha do Araguaia o mais forte dos casos, cheio de fios soltos. Ocorrido entre 1972 e 1975, o conflito envolveu o PCdoB e as Forças Armadas. O número de desaparecidos é controverso. Pesquisadores estimam entre 59 e 68 militantes, dois terços dos quais teriam sido eliminados depois de feitos prisioneiros. Cerca de duas dezenas de camponeses que aderiram à guerrilha também teriam sido mortos.
Ao analisar duas publicações de filhos de militares que participaram da repressão à época da ditadura, Myrian Alves encontrou as pontas que, segundo ela, amarram o destino de alguns militantes da APML e colocam a possibilidade de que outros quadros da esquerda armada que atuavam em centros urbanos também possam ter sido transportados e mortos no Araguaia. Um dos livros é Sem Vestígios, de 2008, da jornalista Taís Morais; o outro é Borboletas e Lobisomens, de 2018, originário da tese de doutorado do jornalista e historiador da Universidade de Brasília (UnB), Hugo Studart. Taís é filha do sargento do Exército José dos Reis, agente que usava o codinome “Régis”, e Studart do coronel da Aeronáutica Jonas Alves Corrêa (falecido no ano passado), dois militares com forte atuação na repressão à guerrilha.
Taís já havia tratado do tema em 2005 numa das publicações de referência, Operação Araguaia, os arquivos secretos da guerrilha, em parceria com o jornalista Eumano Silva. Três anos depois, com novos documentos, ela escreveu sozinha o romance Sem Vestígios, onde revela a presença do pai de Hugo Studart, Jonas, nas operações do Araguaia. Também relata que o militar entregou Honestino Guimarães no Araguaia ao personagem fictício de seu livro, Carioca, que na vida real era o sargento Joaquim Artur Lopes de Souza, conhecido no Araguaia pelo codinome de Ivan. Agentes do Centro de Informações do Exército (CIE) e amigos, Ivan e Régis formariam a principal dupla nas execuções de mais de uma dezena de prisioneiros, segundo Studart. O livro de Taís levanta as primeiras hipóteses sobre a presença de militantes urbanos no Araguaia: “Nem todos os subversivos mortos no Araguaia haviam sido detidos ali mesmo. Muitos foram trazidos de outros cantos. Foi o caso do goiano Honestino Monteiro Guimarães (…). Quem o escoltava era o coronel Jonas, da Aeronáutica, acompanhado por quatro agentes da equipe”, escreveu.
Em Borboletas e Lobisomens Hugo Studart – sem dizer que o personagem a que se referia era seu pai – escreveu que, em julho de 1974 o antigo chefe de Operações do Cisa (Centro de Informações Secretas da Aeronáutica), o coronel aviador Jonas Alves Corrêa pilotou o jatinho HS-125 que decolou do Galeão com destino a Marabá, onde entregou “cinco prisioneiros encapuzados” aos cuidados do sargento José dos Reis (o pai de Taís), e do major do Exército, Leônidas Soriano Caldas. No decorrer do livro, 158 páginas depois, ele afirma que José dos Reis e Caldas “executaram na mata” os cinco prisioneiros. Segundo ele, no período das chuvas de 1974, as enxurradas haviam levado parte da terra de uma cova rasa, trazendo à superfície um detalhe macabro que descreve secamente: “um cachorro sentiu o cheiro, escavou e encontrou uma mão humana”. Alertado, um grupo de militares foi até o local. “Escavaram e, quando tiraram o corpo, havia outro embaixo. Tiraram. Mais dois corpos lado a lado. No fundo, mais um corpo. Cinco corpos numa mesma cova rasa”, conta, ligando os corpos à missão que seu pai recebera, em julho, de transportar até Marabá os militantes vivos. “Por essa confluência de indícios, é quase certo que os cinco prisioneiros transportados do Rio de Janeiro para Marabá, em julho de 1974, sejam os mesmos cinco corpos encontrados amontoados, em cova rasa, em dezembro do mesmo ano”. Ele não cita nomes.
Evidências encontradas pela pesquisadora e jornalista Myrian Luiz Alves apontam que
desaparecidos políticos foram levados clandestinamente para execução no Araguaia
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Myrian Alves diz que os dois livros tratam de um mesmo fato, cuja credibilidade está no perfil das fontes. A probabilidade de os outros dois nomes serem mesmo Santa Cruz e Collier, segundo ela, aparece no livro de Taís, que procura passar informações codificadas, segundo a pesquisadora. “Basta fazer o cruzamento das informações. Quando Taís apresenta o nome Jonas [pai do Hugo], entregando Honestino, um “argentino e um francês”, além de outro cujo nome seria Bacuri [codinome de Eduardo Collen Leite, um equívoco Taís admite, já que Bacuri seria assassinado no litoral de São Paulo em dezembro de 1970], fica evidente de quem se trata: Santa Cruz nome espanhol, ou castelhano, e Collier, evidentemente, francês. Posteriormente, Hugo afirma que o pai de Taís e outro agente seriam os responsáveis pela execução, no Araguaia. E afirma, ainda, que Jonas era o responsável por “virar” [transformar em informantes] militantes nas cidades. Creio que o objetivo dos militares era a acareação, para saber até que ponto estavam organizados”, afirma Myrian.
A jornalista lamenta a opção adotada pelos colegas de não revelar o vínculo familiar com as fontes. “Conheço a Taís e o Hugo. Seria mais honesto cada um contar a verdade: meu pai me disse isso e aquilo. Ninguém perguntou a Taís ou pediu para ver o tal diário do Carioca [suposto relato que ela diz ter sido deixado por Ivan e que usa para contar histórias vividas por seu pai], já morto”, diz Myrian, com uma revelação de bastidor importante para se compreender a intrincada trama: “No caso do Honestino, o Hugo me ligou em abril de 2018, antes do lançamento do livro Borboletas e Lobisomens, pedindo-me um conselho. Contou-me que o pai dele lhe disse que foi ele quem levou Honestino e outros três ou quatro, sequestrados no Rio, para serem mortos no Araguaia e que o pai da Taís era envolvido na morte deles [segundo o próprio pai teria lhe dito]. Então, Hugo me perguntou se ele deveria colocar isso no livro. Estávamos em 2018. E eu respondi: ‘se o seu pai disse, coloca’. Nem precisava esperar o livro. Meses antes, ele me pediu para revisar a tese de doutorado dele [UnB], que gerou o livro, e não havia nada sobre isso. Naquele momento, eu não tinha o livro da Taís em mãos. Quando peguei novamente o livro, cruzei. O coronel Lício Maciel [que era do CIE e atuou na repressão à guerrilha], em seu blog, afirmava que o Hugo tinha somente lido o relatório, ou dossiê, da Aeronáutica, e, ainda, que o pai do Hugo tinha o mesmo papel que ele, Lício, que era o de formar grupos de agentes que atuaram no Araguaia e em outros casos”, revela.
Myrian também critica o fato de Hugo, ao contrário de Taís, ter afirmado no livro que vários guerrilheiros saíram de lá vivos, porque teriam feito “delação premiada”, termo que nem existia naquela época. “Nem os militares, que forneceram fotos, documentos, etc, chegaram ao ponto de ‘queimar’ a história daqueles jovens chamando-os de delatores. Foram executados, e é isso que temos de contar”, disse. Ela se refere aqui a um dos capítulos mais controversos de Borboletas e Lobisomens, em que o jornalista sustenta que sete guerrilheiros dados como desaparecidos sobreviveram mediante “delação premiada” e, com identidades falsas, foram incluídos no programa de proteção à testemunha. Myrian diz que não há provas sobre essa afirmação, negada também por familiares dos desaparecidos.
A jornalista considera estranho que a Comissão de Mortos e Desaparecidos não tenha cruzado as informações dos dois livros. Citado expressamente, Honestino Guimarães dá nome ao Museu Nacional da República, em Brasília, é o único presidente da UNE desaparecido e sua atuação está fortemente ligada ao movimento estudantil da Universidade de Brasília (UnB), onde estudava geologia até cair na clandestinidade. “Arrasta-se e repete-se por anos as mesmas informações, sem o aprofundamento que deveria contribuir para os fatos de nossa história e em total desrespeito aos envolvidos”, diz ela. Também critica a Comissão da Verdade “que sequer trabalhou direito no caso Araguaia”, segundo a jornalista.
Em 2008, ao tocar por conta própria uma pesquisa antropológica sobre corpos retirados do Cemitério de Xambioá (TO), Myrian encontrou indícios que levaram a Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados e a Secretaria Nacional de Direitos Humanos a confirmarem, por exame de DNA, que os restos mortais eram do estudante de química da Universidade Federal do Ceará, Bergson Gurjão Farias, primeiro militante do PCdoB morto em 1972, num confronto com uma patrulha do Exército no Araguaia.