O artigo "Afinal, o que é mesmo que um/a jornalista faz pra viver?", do jornalista Cesar Valente, pesquisador do objETHOS e mestrando no PPGJor/UFSC, publicado no dia 5 de agosto, é bem mais que uma explicação sobre diferenças e semelhanças entre Jornalismo e Comunicação. Ao mencionar o elefante que todos desviam e fingem não ver, em analogia à metáfora do "bode na sala" , o autor dá a dimensão do tema, da sua complexidade e das polêmicas ancoradas no dia-a-dia de trabalho de jornalistas. Uma análise importante sobre uma realidade quase nunca mencionada e que é tratada de forma elucidativa e pedagógica.
“Para Bourdieu (1997:30) o jornalista é uma entidade abstrata que não existe.”
No meio da sala da casa onde vivem as e os jornalistas, existe um elefante. Na maior parte do tempo passamos todos e todas por ele sem prestar atenção e muitas vezes até fazendo questão de não vê-lo. Da mesma forma como se faz com tantos outros grandes problemas que encontramos vida afora, instalados bem no meio da sala, do quarto, ou do escritório.
Acho que todos acreditamos que, se pararmos de olhar para ele, de falar nele e mesmo de pensar nele, o elefante desaparecerá.
Ao reler recentemente o artigo “O Jornalista: do mito ao mercado”, da professora Zélia Leal Adghirni, que foi publicado 19 anos atrás (uma eternidade!) na revista Estudos em Jornalismo e Mídia (Vol II, nº 1, 2005), deparei-me, levado pela assustadora clareza do texto, com a nítida imagem desse paquiderme que durante muito tempo também fiz questão de ignorar, deixar de lado, fazer de conta que não vi.
Antes de chegar à sala, enquanto navegava pelos parágrafos iniciais do artigo, deliciei-me não só com o poder de síntese mas, principalmente, com a visão precisa que demonstrava, em 2005, o que aconteceria com a profissão, com o ofício dos e das jornalistas.
“O jornalista herói está com os dias contados. A imagem romântica do jornalista já não existe. Surge no lugar deste, um profissional híbrido, versátil, ora atuando no campo das mídias ora servindo aos senhores do campo da comunicação”.
E, até com certa delicadeza, ela nos conduz para aquele cômodo central onde está aquele animal enorme que fazemos questão de ignorar. Chama a nossa atenção para o fato de que foram os europeus que forjaram a concepção de que comunicação e jornalismo são coisas distintas. Citando Erik Neveu, explica que “‘Comunicação’ se refere a processos e mediações sociais e tecnológicas enquanto que ‘jornalismo’ se restringe aos processos de produção de notícia, especificamente ligadas às mídias”.
E ela valeu-se também de Marcondes Filho (2000), ao explicar que, quanto à origem, “no campo da comunicação o jornalista recebe gratuitamente a notícia enquanto que no campo da informação, o jornalista tem de buscar a notícia, ela lhe custa trabalho”.
Por mais distraídos que estejamos, a esta altura, é impossível ignorar aquela tromba assustadora, balançando a pouca distância dos nossos ainda incrédulos olhos.
“No Brasil, os dois campos se confundem. Jornalismo e comunicação funcionam quase como sinônimos e os protagonistas destes cenários atuam ora num campo, ora noutro. Mas todos se auto-definem como jornalistas”.
Segundo os dados obtidos pelo recorte estadual da pesquisa Perfil do Jornalista Brasileiro 2021, os jornalistas catarinenses se dividem entre os 49,4% que atuam “na mídia” (imprensa, veículos de comunicação, arranjos alternativos de mídia/mídia independente, startup jornalística e/ou produção de conteúdo jornalístico), e os 41% que estão “fora da mídia” (assessoria de imprensa ou comunicação, produtoras de conteúdo para mídias digitais ou outras ações que utilizam conhecimento jornalístico). Uma pequena parcela (9,5%) está na docência.
Essa mesma pesquisa revela que entre aqueles que afirmam estar “na mídia”, ao enumerar as tarefas executadas num dia normal de trabalho, numa questão em que era possível marcar várias opções, “assessoria de imprensa” aparece em 28,7% das respostas. E entre aquele que afirmam estar “fora da mídia”, na questão de múltipla escolha sobre atividades num dia normal de trabalho, tem “reportagem” em 42,6% das respostas.
Ou seja: essa confusão de campos não é apenas uma elucubração teórica. E, a meu ver, esse é o elefante no meio da sala. Nem os sindicatos de jornalistas, nem as empresas se opuseram a esse casamento. O fato de que no campo das assessorias de imprensa se utilizem técnicas e funções jornalísticas parece ter sido suficiente para justificar essa aceitação. E jornalistas foram ocupando territórios das Relações Públicas e instalando ali seus assentamentos.
“O novo jornalista é um profissional híbrido com perfil de camaleão, ora identificado com as rotinas da redação, ora como assessor de imprensa, ora como jornalista / funcionário.
Também pode estar “produzindo conteúdos” para um site na internet, numa empresa privada, numa ONG ou atuando no contexto da “advocacia” de causas públicas e/ou sócio-humanitárias”.
A diluição de fronteiras é consequência da realidade criada pelo encolhimento do mercado de trabalho para jornalistas nas empresas informativas tradicionais e as oportunidades de ocupação de espaços midiáticos que as fontes (individuais, políticas ou corporativas) identificaram.
Aparentemente, as equipes “enxutas” de jornalistas “na mídia” não conseguem sobreviver, ou preencher sua cota diária de trabalho sem a ajuda dos jornalistas que, “fora da mídia”, produzem conteúdos “prontos para usar” em benefício de seus clientes. A própria pauta (a agenda dos assuntos a serem cobertos) dos veículos de comunicação, tem sido influenciada pelo que Adghirni chama de “mídia das fontes” (ou “mídia corporativa”).
As empresas jornalísticas perderam o monopólio da produção de notícias. As fontes criaram suas próprias mídias e tentam interferir nas pautas da mídia convencional. E quando essas fontes jorram do poder político estruturado que governa o país, os gêneros se embaralham, as funções se subvertem, os desafios e jogos de interesse tornam-se opacos e indistinguíveis para a sociedade. Não está claro a quem pertence o capital simbólico dos diferentes campos em atuação.
A esta altura, em vez de olhar nos olhos daquela criatura enorme que ocupa um espaço considerável da sala, podemos fazer como sempre, desviando-nos e prosseguindo como se nada estivesse acontecendo. Ou, quem sabe, parar para pensar um pouco mais sobre os efeitos que essa “hibridização” tem provocado na definição da identidade profissional do jornalista. E que alterações provocou naquela ideia, ou imagem, antiga em que o/a jornalista iria salvar-nos do monstro da desinformação, empreendendo uma batalha corajosa e destemida em busca da informação. E tendo, em sua bandeira ou em seu escudo, lemas heroicos, como essas frases lendárias: “Imprensa é oposição. O resto é armazém de secos e molhados” (Millôr Fernandes) e “News is what someone wants suppressed. Everything else is advertising” (William Randolph Hearst).
Pensando bem, no meio da sala, em vez de elefante, talvez tenhamos mesmo é um armazém de secos e molhados onde trabalham, nem sempre satisfeitos e quase nunca adequadamente remunerados, jornalistas publicitários e seus irmãos publicitários jornalistas.
*Cesar Valente é jornalista, pesquisador do objETHOS e mestrando no PPGJor/UFSC.
Referências
ADGHIRNI, Zélia L. O Jornalista: do mito ao mercado. Estudos em Jornalismo e Mídia. v. 2 n. 1 (2005): Sociologia do Jornalismo. PPGJor/UFSC, Florianópolis. Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/jornalismo/article/view/2088/1828
BOURDIEU, Pierre. Sobre a televisão. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997.
LIMA, S.P. Perfil do jornalista brasileiro 2021: características sociodemográfica políticas, de saúde e do trabalho. Florianópolis: Quorum Comunicações, 2022.
MARCONDES FILHO, Ciro. A saga dos cães perdidos. São Paulo: Hacke, 2000.
NEVEU, Erik. Sociologie du Journalisme. Paris: Ed. La Découverte, 2001.