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DEGENERESCÊNCIAS – CAP - 6, POR PAULO GAIGER (*)

Foto do escritor: Alexandre CostaAlexandre Costa

Carthago delenda est! É o que me vem à cabeça quando lembro o Brasil dos anos em que vivi lá como enfermeira. Uma sacanagem! Eu podia ter ido viver na Nova Zelândia ou onde o diabo perdeu as botas. Não, fui parar no Brasil. Ninguém merece! Mas aí essa gente meio Pollyanna, de sorriso angelical, tipo grupo de jovens cheio de amor no coração, me diz: podia ter sido pior, podias ter vindo como cabeleireira do Kim Jong-un ou do Trump. O que seria pior? Quando cheguei novamente a essas terras verdes e amarelas, verdes pela floresta que resistia, e amarelas pelas queimadas que se multiplicavam, um ex-capitão do exército já tinha sido eleito presidente. Ele e seus três filhos machos, que são quatro, na verdade. O quarteto do mal e do ódio, concluí. Ah, se fosse um quarteto de jazz, quem me dera! Dream a little dream of me. O desgraçado era um fascista, a favor da censura, da tortura, da ditadura, do extermínio dos indígenas, de tudo que impede que o mundo seja melhor. Mentia, odiava as artes, os livros, a ciência e até a educação. Se lá na peste negra, os boçais culparam os judeus, o quarteto colocou no paredão de fuzilamento os gays, trans, negros, mulheres, índios, a imprensa, os artistas, os filósofos, os professores... Tentou acabar com tudo! Foi eleito porque teve a habilidade em despertar as machezas e os medos adormecidos do país usando somente as redes sociais, o megafone das asnices e das mentiras. Hummm, lembrei-me de uma coisa: na Itália dos 1260, eu fui um rapazote trans e queria estudar. Então entrei na Ordem dos Dominicanos, embora não acreditasse em fantasmas nem em milagres. Psiu! Não conta pra ninguém se não eu me ferro! Conheci Tomás de Aquino. Aprendi latim e lembro de uma frase que serve para o quarteto e seus seguidores: Asinus asinum fricat. Fico rindo por dentro e apavorada por fora. Gente do céu, o coronavírus, que é o vírus que assolava o mundo todo, foi tratado no Brasil com desdém pelo quarteto. Meus colegas e eu nos virando nos hospitais, alguns muito precários, assistindo ao desespero das famílias, as mortes aos borbotões e o babaca saindo às ruas e sendo saudado pelos seus seguidores, desobedecendo à orientação do isolamento social. Degenerescências! Pra bom entendedor, meia palavra basta: o Brasil tinha um governo de imbecis. Puxa vida, eu já tinha experimentado na pele o fascismo de Mussolini, o nazismo de Hitler, a foice de Stalin e o khmer Vermelho. Um vírus multifacetado e mutante que não se consegue erradicar e fica hibernando até que alguém o desperta. E é sedutor porque se trata de matar os outros, de torturar, de violentar. O ato de torturar provoca ereção, me disse uma vez o meu amigo Nicolau. O torturador faz seu trabalho com tanto prazer e com imensa covardia. Impunidade. Lembram-se do que eu contei da virada do primeiro milênio? Do que eu vi e sofri? Pois é! Em 2020, vivi uma avalanche diária de estupidez. Enfermeiros, médicos, técnicos da saúde seguidamente eram agredidos nas ruas, nos trens e nos ônibus Boa parte dos comerciantes e dos pastores evangélicos estava cagando para o isolamento. Alguns boçais fizeram carreatas e pediam a volta da ditadura, o fim do congresso e da justiça. Era o próprio inferno. E eu que já tinha sido estuprada e queimada na fogueira por ser mulher. O que essa gente queria era isso, só que sem precisar dar satisfações. Teve até um político muito do safado, amigo do quarteto da morte, que disse que o fuzil era mais forte que a justiça. Omitiu que é simplesmente poltrão e abjeto, um recurso de quem é admira os nazis. Não sei como a história acabou, se foi num golpe militar, numa carnificina, só sei que a burrice, o ódio e a selvageria subiram ao pódio. E com aplausos.


(*) Paulo Gaiger é artista professor do Centro de Artes – UFPel Conto publicado no e-book VIVER E MORRER NA PESTE – EPIDEMIA NA ARTE Ed. UFPel - 2021. CONFIRA NA PRÓXIMA SEMANA, O CAP - 7. Conto publicado no e-book VIVER E MORRER NA PESTE – EPIDEMIA NA ARTE Ed. UFPel - 2021. LEIA TODOS OS CAPÍTULOS DEGENERESCÊNCIAS – CAP - 1


















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