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DEGENERESCÊNCIAS – CAP - 5, POR PAULO GAIGER (*)

Foto do escritor: Alexandre CostaAlexandre Costa

Já prestaram atenção na letra do hino francês? É um horror de macheza bélica. Mulher nenhuma deveria cantar Aux armes citoyens, formez vos bataillons. Marchons, marchons. Qu'un sang impur, abreuve nos sillons. O da Itália, então, em vez de cantar a vida, canta a morte: Stringiamoci a coorte. Siam pronti alla morte, siam pronti alla morte. l'Italia chiamò. E esse trecho do Brasil: Mas, se ergues da justiça a clava forte, verás que um filho teu não foge à luta, nem teme, quem te adora, a própria morte... Não e não! A pátria, guys, são os grandes negócios, dãn! Você deve morrer pelos bancos e pela federação das indústrias! O exército existe para isso mesmo: proteger os ricaços! Taí o Putin, né! O pobre se ferra! Acho que não existe hino que não fale de luta, morte, macheza, rei, rainha, inimigos... Se eu fosse compositora, talvez ainda seja em alguma vida, vou escrever o hino falando de amor, de beijos, de como é bom rolar abraçados e trepar na grama verde do Buckinghan ou da Casa Branca, de como é bonito dar bom dia, de como é bacana ver todas as pessoas vivendo bem e alegres! Mas, não! Todo mundo vai rir da minha cara! Que vírus, meu São Lázaro. Ufa! Falei de tanto hino que quase viro uma coralista do orfeão do colégio. Não vou cantar! Nem me peça! Estou com a garganta doída. Não de cantar. Mas de tanto ir de lá para cá, de cá para lá, chamando a atenção, recolhendo corpos, afastando curiosos. A peste negra tá muito foda de combater. A pintura do meu querido Traini... Quem vê a pintura, feita antes do forte da epidemia, já fica meio assim bagunçado. Quem anda nas ruas sujas da urbe, se espanta e se desespera. Aqui em Florença a pestilência mata sem piedade. Já sabe: se sai sangue pelo nariz, manchas no corpo, é porque as parcas já estão na sala. Não há medicina, nem ciência, é tudo muito precário. A porquice se espalha por todos os lados, dentro das casas, nos palácios, cheiro de merda e esgoto por tudo. Mas não é de hoje. Há séculos, a igreja proibiu os cuidados corporais, os banhos, a limpeza por considerá-las profanas, coisa do demo. Então, agora que é tarde, as pessoas não sabem o que fazer e rezam, jejuam ou acham um bode expiatório, um judeu, um não cristão, mesmo que judeus e pagãos morram às pencas. A bactéria não escolhe a vítima pela fé. Mas certamente temeria o conhecimento se a fé não tivesse impedido a ciência e o asseio. Somos sete gurias e três rapazes trabalhando para diminuir os estragos, orientando a população, tratando do possível. Boccaccio, nosso mestre, já disse para irmos embora da cidade porque essa gente é cabeçuda. Fica rezando e rezando, jejuando e jejuando e pedindo a deus. Asneira da fé no fantasma do céu. Que infância! Isso lembra o Brasil, quando estive lá em 2020. Um vírus terrível atacou o mundo todo, mas o presidente mandou o povo jejuar. E não só isso, avacalhou com a ciência e chamou a pandemia de gripezinha, embora muita gente estivesse morrendo. Babacas e crentes têm um tipo de vírus que ainda não tem vacina. Florença, nesse 1348, também tá cheia de babacas e crentes. Degenerescências! Por causa disso, acabamos acatando o pedido de Boccaccio e nos retiramos de Florença. Bateu um medo de que fôssemos massacradas também. Nosso mestre, que já era um escritor, aproveitou a estada para escrever seu grande livro: Decameron. Eu sou a Pampineia, a mais velha do grupo. Que orgulho! Já leram? Essa bactéria vinda dos ratos, das pulgas devastou o mundo. Maldita igreja, malditos ratos! E eu que amo tanto o ratoncito Pérez. Não me aguento!


(*) Paulo Gaiger é artista professor do Centro de Artes – UFPel

Conto publicado no e-book VIVER E MORRER NA PESTE – EPIDEMIA NA ARTE Ed. UFPel - 2021.

CONFIRA NA PRÓXIMA SEMANA, O CAP - 6.

Conto publicado no e-book VIVER E MORRER NA PESTE – EPIDEMIA NA ARTE Ed. UFPel - 2021. LEIA TODOS OS CAPÍTULOS DEGENERESCÊNCIAS – CAP - 1



































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