DEGENERESCÊNCIAS – CAP - 4, POR PAULO GAIGER (*)
- Alexandre Costa
- 31 de mar. de 2022
- 3 min de leitura

Minha vida é agitada, quase não deito a cabeça no travesseiro. Eu era uma criança quando começou a guerra dos cem anos, em plena peste negra. Os reinos da Inglaterra e França peleando pelo trono da França e a igreja abençoando a perseguição e morte de hereges, inclusive a minha. Fui queimada pela Santa Madre Igreja, churrasquinho de Joana, que era o nome que meus pais me deram. Eu vinha de uma família camponesa e muito religiosa e era, bien sûr, analphabète como quase todo o país. Ainda assim, em um mundo de pensamento mágico e religioso foi fácil convencer o Carlos VII a me deixar integrar o exército. Eu tinha 17 anos. A França ia mal das pernas. Considerando que no século XV não tinha esse papo de infância, adolescência... O que me diferenciava de um guri de 17 anos era isso: ele era homem e eu, mulher. Eu era bem menos, portanto. Uma perda sem mais. Também por isso, vítima preferencial e mais divertida para a fogueira. Os padres adoravam queimar mulheres. Por que será? Quando peitei o rei e lhe disse que eu havia recebido uma mensagem dos céus, Carlos deve ter pensado: mais uma louca! Melhor não contrariar. E lá me fui sem saber exatamente o que fazer com uma espada. Na política, na religião e na guerra não existem amigos, nem solidariedade ou empatia. Depois de lutar e comandar vitórias, fui vendida para os inimigos e queimada como bruxa. Bruxa eu? Adorei! Poderosa! Como das outras vezes, não morri. Nunca morro. Bom, acho que fiz besteira indo pra guerra, era e é contra os meus princípios. Talvez quisesse emoções fortes, como se não as vivesse. Coisa de adolescente! Mas esse papo de bruxa me deixou alegre como uma criança que ganha um doce. Cinco séculos depois fui beatificada. Que sacanagem! Virei santa! Era só o que me faltava: deixar de ser bruxa pra ser santa! É coisa de homem se fingindo de sensível! Ser santa é pior do que ser rainha do lar! É pior do que ganhar uma panela no dia das mães! Não tem explicação. A maior parte dos homens é escrota, bélica, sem noção. Destrói tudo o que encontra pela frente, mata ou morre pelo trono, toma pra si as melhores terras, achincalha mulheres, pede as bênçãos de deus e diz que tudo isso é pelo reino, pela pátria, pelo povo, pela fé. Como se manter no poder não é mole, aí sai atrás de nomes, inventa mitos para santificar, faz caridade para acalmar a gentalha e prorrogar seu poder. Olha só que homem bom! Vão dizer! Essa coisa de lutar pela pátria e... viver sem razão, no século XX, vai dar pano pra manga. Mandachuvas, empresários e capitalistas vão usar a mesma tática da religião dos tempos sem smartphone. Vão fazer a ambição deles se confundir com os quereres da gente pobre. Como a igreja fez, vão usar o povo e a pátria para enriquecer e aumentar o poder sobre a própria pátria e seu povo. Aí, o pobretão vai votar no empresário e o que a vida desgraçou vai pagar dízimo para o templo. Tudo em nome do progresso e do desenvolvimento. Se o cabra pensar um pouquinho, verá que o discurso dessa gente poderosa é papo pra boi dormir! Puro blábláblá! Esse embuste e essa violência estão nas propagandas oficiais, no consumo, nos mitos, nos hinos que as pessoas cantam emocionadas como forma de alimentar o espírito patriótico e o mercado financeiro. Patético delírio! Quando alguém acha que isso tá errado, o cacete baixa nas paletas da coitada. Pra que se criou o exército? Para defender os poderosos que falam no lugar da pátria, do império, do reino, da fé ou do que for. Machezas. Jesus, aiiii, que papo mais chaaaato! Às vezes eu fico pesada, né? Sorry.
CONFIRA NA PRÓXIMA SEMANA, O CAP - 5.
Conto publicado no e-book VIVER E MORRER NA PESTE – EPIDEMIA NA ARTE Ed. UFPel - 2021.
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