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Foto do escritorAlexandre Costa

DEGENERESCÊNCIAS – CAP - 1, POR PAULO GAIGER (*)


Meu santo cristo! Falo por falar, escrevo por escrever, ou melhor, dizendo ou escrevendo, pois é fato que estou a escrever para passar o tempo e não dar margem a maus entendimentos e calúnias. Quero que saibam que estou cansada, estoy muy cansada, como canta Fabiana Cantilo, uma cantautora argentina que amo. Comprei o CD Ahora quando estive em la ciudad de Santa Fé, onde passei noites enchendo a cara de cerveja e fumando feito chaminé, como canta o Nei Lisboa. Já faz um tempão que fui a Santa Fé querendo tirar férias de mim mesma. Nos confins, séculos, guerras e pandemias que cruzei, nunca senti a premência à socialização ou ao isolamento porque sou sozinha e meio invisível, eu acho, embora tenha tido mil casamentos e mil contatinhos. Como apontou o meu psiquiatra, Paulinho Rosa, o que me incomoda sou eu mesma. Quero divórcio de mim mesma, da minha impotência diante das coisas escabrosas ou belas que testemunho e só testemunho. Argh! Brigo comigo todas as horas de todos os séculos e séculos, amém, sejam santos ou não. Afinal, nem as férias em Santa Fé ou em santa alguma, nem litros de cerveja e maços de puro me ajudaram a me compreender e a compreender esse mundo, vasto mundo. C’est la vie! Haja saco! Se estive em Santa Fé, e cantava, bebassa por sus calles, ya sé que estoy pianta’o, pianta’o, pianta’o..., conto, meus caros e minhas caras, que também estive em Mênfis, Bilbao, Xian, Aleppo, Argos, Paris, Moscou, Biblos, Éfeso, Freguesia de São Francisco de Paula, Tenochtitlán, Brasília... Trabalhei no Vale do Silício e ajudei a plantar e a colher aveia e cevada no crescente fértil, lá no que veio a ser a Mesopotâmia. Engordei, é claro! Bueno, a lista de lugares é longa demais para colocar aqui. Pareço louca, mas não. Sou é viajada! Não porque eu queira, mas é que o destino me escolheu por uma razão que nem um deus se anima a confessar. Não sou a mulher maravilha ou qualquer outra com superpoderes. Mas tenho meus mistérios que nem eu sei quais são além do de perambular mundo e tempo a fora. Milênios atrás, por exemplo, saí incólume do Egito, embora a ameaça do orthopoxvírus variolae, que nome chato de dizer, que deu um susto no Ramsés II. Naquele sol de rachar, eu me chamava Nefertari, uma das esposas do Ramsezinho. Eu era a favorita, a mais bela e a mais inteligente, por sorte. Ser esposa do faraó tem um quê de contemplação bovina. Muuuuu! Mas ser o faraó é uma grande sacada. Convencer o populacho de que deve obediência e favores ao mandatário é o sonho de todo déspota enrustido. É inventar um deus e se dizer seu escolhido. Essa coisa de pai para filho, de família eleita é a própria degenerescência daquilo que se poderia alcançar como raça humana. Eu que vi tanta coisa, nunca vi isso dar certo, só muita gente se fodendo, sendo presa, torturada, exterminada ou morrendo de inanição ou de doença. O déspota, seja ele faraó, imperador, rei, banqueiro, papa, revolucionário, califa, rabino, patrão, marido, entregador de botijão ou general, tem uma queda por mulheres, desde que elas se portem como bibelôs, mimosinhas, quietinhas, prontinhas, tudo inha, diminutivozinhas... Caso contrário, deus, o grande patriarca do céu, manda matar. Hummm... Comentei várias vezes com o Sigmund: você está errado. São os homens que morrem, ou melhor, matam porque têm inveja das mulheres. Porque neles o eros está mortinho da silva. O pau não é o cérebro, mas eles pensam com o pau. Freud olhava pra mim como quem olha pra uma salada de chuchu: Martha, liebe Frau, você é incomum! Que vontade me dava de lhe aplicar uma sova! Ficava quieta. Isso era bem comum!


Cap. II – na próxima semana


!. Agradecimentos: Fabiana Jorge, Paulo Rosa, Mauro Póvoas, Rubelise da Cunha e Evandro Affonso Ferreira (autor de O mendigo que sabia de cor os adágios de Erasmo de Rotterdam).

2. Conto publicado no e-book VIVER E MORRER NA PESTE – EPIDEMIA NA ARTE Ed. UFPel - 2021.

(*) Paulo Gaiger é artista professor do Centro de Artes – UFPel.

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