Certamente ao escrever isso muita gente há de me execrar, mas não posso fugir, nem me omitir. Ontem à noite, na capa da revista Veja, li uma espécie de recomendação para que todos os escritores que pleiteavam um vaga para a Academia Brasileira de Letras retirassem a sua candidatura para que Fernanda Montenegro ocupasse a cadeira de número 17 que foi de Afonso Arinos, jurista, político, historiador, professor, ensaísta e crítico brasileiro. Vi amigos enaltecendo a iniciativa o que me deixou ainda mais perplexa. Hoje, pela manhã, vi que a nossa primeira-dama do Teatro Brasileiro será empossada como a mais recente imortal das letras.
Ora, Fernanda Montenegro já é imortal há pelo menos três décadas e seguirá sendo, senão a maior, uma das maiores artistas brasileiras para daqui há 500 anos, caso ainda exista mundo. Seu talento e contribuição para as artes cênicas, o cinema e a televisão do país é indiscutível e devemos celebrar a sua vida e o seu talento monumental. Além disso, Fernanda é uma mulher articulada e progressista que sempre se posicionou a favor da democracia e lutou pelos direitos civis e liberdades sociais. Deu comprometimento com a cultura e as políticas públicas para a sua viabilização, num país desigual e atrasado como o nosso, é motivo de orgulho e nos traz alento e conforto nestes tempos tão sombrios.
FOTOS: Conceição Evaristo (Lis Pedreira), Mario Quintana e Machado de Assis (reproduções)
No início do ano passado li Prólogo, Ato e Epílogo: Memórias , sobre a sua formidável biografia, escrita em parceria com a jornalista Martha Góes, que além de revelar os bastidores da vida e arte dessa grande atriz, ainda dá uma aula de história do Brasil. Fernanda trabalhou com os maiores diretores e levou ao palco inúmeros autores de sucesso da dramaturgia nacional e internacional como Nélson Rodrigues, Jorge de Andrade, Arthur Azevedo, Millôr Fernandes, Augusto Boal, Gerald Thomas, Jean Anouilh, Pirandello, Georges Feydeau, Bernard Shaw, Jean Kerr, Harold Pinter, Samuel Beckett, Friedrich Dürrenmat, Rainer Werner Fassbinder e Anton Tchekhov. Suas interpretações profundas, comoventes e arrebatadoras sempre envolveram o público por sua verdade e honestidade. No cinema e na televisão não foi diferente, e Fernanda segue encantando e nos abismando com sua entrega sem limites e sua extraordinária capacidade de transformação a cada novo papel. Da comédia ao drama, ela brilha e entrega, sempre, o seu melhor. Uma mulher e uma atriz superlativa. No mínimo, magistral.
E são por todas estas suas qualidades, além de uma humildade característica, tão escassa hoje em dia, quando a vaidade sobe à cabeça da maioria doa atores que já se julgam celebridades depois da primeira Malhação, que eu me espantei com o seu desejo de concorrer a uma vaga na Academia Brasileira de Letras. Ora, o estatuto é claro ao pontuar que qualquer brasileiro nato que tenha escrito obras de reconhecido mérito literária em qualquer gênero possam ocupar uma cadeira na Academia.
Com todo respeito e admiração, que eu nutro por esta grande artista, eu me pergunto: qual terá sido a obra ou obras de reconhecido mérito e valor literário que Fernanda Montenegro escreveu? Com exceção da sua maravilhosa biografia, escrita em parceria com Martha Góes, nenhuma. Ora, o que então justifica a sua candidatura e a ocupação de uma cadeira nesta instituição específica para escritores? O que justifica que outros escritores, com obras publicadas com mérito e valor literário reconhecido retirem a sua candidatura para que uma atriz que não é escritora ganhe um assento? Por que razão acabaram com o estatuto que rege a casa e passaram por cima dos ritos e regras vigentes? Desculpem, mas não compreendi.
Ao pedirem que em respeito à Fernanda Montenegro os verdadeiros escritores retirassem as suas candidaturas os membros da academia brasileira de letras desrespeitaram as regras que regem o estatuto da academia? Sinceramente, estou em estado de choque. Imaginem se, nesta edição, concorressem Chico Buarque, Luiz Fernando Veríssimo, Milton Hatoun e Djamila Ribeiro, por exemplo? Estes autores consagrados e com evidentes contribuições literárias deveriam declinar das suas candidaturas? Ora, quais são os critérios literários vigentes?
Que Fernanda Montenegro ocupe o lugar mais alto do panteão dos artistas é um reconhecimento legítimo e justo, agora, pretender que ela ocupe uma cadeira da Academia Brasileira de Letras por nenhuma obra de valor ou mérito literário é, no mínimo, constrangedor.
Uma instituição que renegou Mário Quintana, um dos maiores poetas brasileiros e Conceição Evaristo, uma mulher negra e uma das escritoras mais importantes do Brasil na Casa criada por Machado de Assis é um verdadeiro escândalo, uma vergonha pública. Pelo menos em respeito à essas injustiças históricas sem reparação nem reconhecimento pelos próprios ‘imortais” da Academia, Fernanda Montenegro não deveria sequer ter pleiteado uma vaga.
Machado de Assis deve estar se revirando no túmulo, impotente, ao perceber que a Academia Brasileira de Letras se rendeu ao glamour e banalização da profissão, pervertendo o status de escritor. Imaginem que para ser imortal, hoje, nem precisa ser mais escritor.
Porto Alegre, 8 de outubro de 2021.
(*) Nora Prado é atriz, poeta, professora de interpretação para Teatro e Cinema, atuou na Escola das Artes do Palco - SP.