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Foto do escritorAlexandre Costa

CIVILIZAÇÃO X BARBÁRIE

Por Artur Henrique Franco Barcelos (*)

Foto: The Guardian, fev. 2010


Os Homens nascem e são livres e iguais em direitos. As distinções sociais só podem fundamentar-se na utilidade comum (França, 1789).


Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotados de razão e consciência e devem agir em relação uns aos outros com espírito de fraternidade. (ONU, 1938).


Ontem em aula de Arqueologia do Mundo Antigo encerramos com um tema para pensar.


A crise do Afeganistão trouxe novamente o debate da fórmula Civilização X Barbárie.


Na disciplina estudamos a construção da ideia e do conceito de Civilização na cultura ocidental, da qual fazemos parte. Com base em uma matriz judaico-cristã no campo da moral e dos valores; e uma matriz greco-romana no campo da filosofia, política e direito, a cultura ocidental criou os "parâmetros" para definir o que seria uma civilização. Entre estes critérios buscava-se, originalmente, povos com:

* Governo Formal

* Escrita

* Legislação (escrita ou não)

* Urbanismo

* Arquitetura Monumental (templos, palácios, tumbas)

* Tecnologia desenvolvida


Nos contatos que os europeus estabeleceram com diversos povos, a partir da expansão marítima do século XVI, passaram a buscar estes elementos. Esta foi a baliza para distinguir povos civilizados e não civilizados (bárbaros, selvagens, primitivos).


A partir do século XVIII e, sobretudo, no século XIX, os ocidentais acrescentaram os critérios de nível tecnológico e progresso, passando a criar uma hierarquia de povos "civilizados", colocando-se sempre no topo. Essa distinção passava, e passa até hoje, por valores também. E, na medida em que os valores do ocidente foram sendo modificados, os critérios foram sendo atualizados. No século XIX ganha força também a ideia de um "ser humano universal", independente da cultura na qual vive. Isto foi fundamental para construir projetos de futuro, tanto no liberalismo como nas correntes socialistas e comunistas. No futuro pensado por ambos, os seres humanos alcançariam as mesmas condições de liberdade, igualdade e fraternidade, pois são sujeitos universais. Deriva daí a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (França, 1789) e depois a Declaração Universal dos Direitos Humanos (ONU, 1938). Em ambas está essa ideia de um ser humano universal, dotado dos mesmos direitos independente de sua origem cultural. Desta forma, o ocidente colocou-se na condição de estabelecer o patamar de civilidade para o mundo. E também a obrigação moral de buscar a transformação de todas as culturas rumo a este patamar.


Lógico que essa não é uma tarefa fácil, visto que os seres humanos se organizam de formas diversificadas e, muitas delas, frontalmente em contraste com o estabelecido pelo ocidente. O que busco na disciplina é demonstrar o papel da Arqueologia e da Antropologia nas classificações de povos a partir do século XIX. Imbricados nas ações do imperialismo europeu na Ásia e na África, os arqueólogos e etnólogos contribuíam com suas teses e descrições de povos, seus hábitos, costumes e cultura material. Desde então, os ocidentais passaram a ter critérios científicos para enquadrar os povos não ocidentais em sua visão de mundo.


É nesse marco que se pode inserir o debate suscitado pela retomada do poder pelo Talibã no Afeganistão. Logo que as notícias começaram a circular teve início também as classificações adjetivas dos Talibãs: bárbaros, medievais, fundamentalistas, retrógrados, etc. Estes adjetivos se dão a partir de qual parâmetro de contraste? O da cultura ocidental. O que chamou a atenção nesse fato foi uma espécie de esquizofrenia. Por um lado, se denunciava o desastre humanitário com a volta dos talibãs. Por outro, o fracasso dos EUA e sua atitude covarde de abandonar o povo afegão a própria sorte após 20 anos de ocupação militar. Ou seja, se declara a necessidade de alguém conter o avanço dos bárbaros, mas se lamenta que os EUA fracassaram porque são imperialistas e foram para lá defender apenas seus interesses. E, nesse caso, como se sai desse impasse? Eu não tenho como tomar um ônibus até a capital de meu Estado no Brasil e, de lá, voar para Cabul e me atracar com os talibãs para salvar os afegãos do atraso e trazê-los para a civilização do século XXI. E não conheço ninguém que possa fazê-lo. Sempre que o ocidente se escandaliza com hábitos não ocidentais praticados em alguns lugares do mundo surge a solução. E ela é chamar a "polícia do mundo", ou seja, a Cavalaria americana. A ONU passou a ser o lugar onde se pede a intervenção e onde ela é autorizada. Vários países militarmente desenvolvidos participam das ações que ONU chancela, como foram as duas Guerras do Golfo e a intervenção no Afeganistão em 2001.


O ocidente está agora divulgando os retrocessos no Afeganistão, sempre em contraste com os direitos humanos alcançados no ocidente, como são por exemplo os direitos das mulheres, um destes valores que foram atualizados no ocidente no século XX e passaram a fazer parte da lista de critérios da hierarquia da civilização.


Qual é a perspectiva de futuro? Que todas as sociedades, em algum momento de suas trajetórias, deverão assumir cada vez mais os hábitos e valores ocidentais. Sua crenças religiosas serão toleradas sempre que respeitarem a laicidade do Estado. A economia será de modo ocidental, com base no trabalho livre remunerado e no livre mercado. Os governos serão democracias, com alguma concessão para as Monarquias parlamentares não ocidentais, como a japonesa, por exemplo. Os hábitos de consumo e comportamento também serão orientados pelo regime de "liberdades" do ocidente.


Quando se alcançará este futuro ocidental do mundo? Quando forças religiosas e políticas como o Talibã forem eliminadas. Totalmente eliminadas. E para isso, os ocidentais terão que olhar para outro lado quando os mariners chegarem queimando chumbo pra cima dos bárbaros. E também fazer vista grossa para os efeitos colaterais da eliminação de inocentes, sempre considerando que os bárbaros não são inocentes.


O Talibã é esse tipo de pedra no caminho da ocidentalização do mundo. Mas os ocidentais têm convicção que seus valores são mais nobres, corretos e superiores, além de cientificamente referendados. E por isso irão vencer a batalha final contra o mal.


(*) Artur Henrique Franco Barcelos arqueólogo é historiador e docente da Universidade Federal do Rio Grande (FURG).

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