Cinco anos após a ex-vereadora do Rio de Janeiro Marielle Franco (PSOL) e seu motorista Anderson Gomes serem brutalmente assassinados, o Brasil segue à espera de justiça e de respostas. Na noite do dia 14 de março de 2018, a vereadora carioca Marielle Franco e o motorista Anderson Gomes foram mortos a tiros no Estácio, região central do Rio de Janeiro, quando o carro em que estavam foi atingido por diversos disparos.
Eleita com 46,5 mil votos, a quinta maior votação para vereadora nas eleições de 2016, Marielle Franco estava no primeiro mandato como parlamentar. Oriunda da favela da Maré, zona norte do Rio, a vereadora tinha 38 anos, era socióloga, com mestrado em administração pública e militava no tema de direitos humanos.
Quatro tiros acertaram a vereadora e três, o motorista. Marielle voltava de um evento na Lapa, chamado Jovens Negras Movendo as Estruturas, quando teve o carro emparelhado por outro veículo, de onde partiram os tiros. Uma assessora da parlamentar, que também estava no carro, sobreviveu aos ataques. As câmeras de monitoramento de trânsito existentes na região estavam desligadas.
Presos em março de 2019, um ano após o crime, Ronnie Lessa e Élcio Queiroz aguardam júri popular. Os acusados não foram julgados nem mesmo em primeira instância. As investigações sobre o duplo assassinato foram marcadas por uma série de fatos que acabaram comprometendo o processo, como a destruição de provas. Os erros grosseiros em relação à condução da linha das investigações revelou que a milícia tem ligações fortes com o poder. A simbiose entre ambos acaba gerando uma dúvida crucial: a política financia a milícia ou é a milícia quem financia a política? A manipulação dos fatos e o medo do crime organizado coloca em dúvida inclusive se existe um mandante.
O caso, no entanto, passou a ser uma questão determinante para o ministro da Justiça e Segurança Pública, Flávio Dino, que ordenou a PF a abrir inquérito para apurar todas as circunstâncias em relação ao crime. Recentemente, novos promotores começaram a trabalhar no caso para tentar desvendá-lo. O ex-PM Ronnie Lessa, acusado de ser responsável pelos disparos que mataram a vereadora Marielle e Anderson, foi expulso da PM apenas neste ano, por ter sido condenado por comércio ilegal de armas. Durante o cumprimento de mandado de prisão pelo homicídio da vereadora Marielle, foram encontradas 117 peças para montagem de fuzis, na casa de um amigo de Lessa. Já Élcio Queiroz, outro ex-PM envolvido no caso, permanece preso por dirigir o veículo no qual Lessa disparou contra as vítimas.
LIGAÇÃO DA MILÍCIA COM A POLÍTICA A demora no julgamento se deve às estratégias da defesa, que apresentou sucessivos recursos para impedir o júri popular. As provas coletadas no caso da vereadora Marielle não apenas afetaram os suspeitos do crime, mas também levaram a operações contra milicianos em Rio das Pedras. O problema é que as investigações revelaram evidências relacionadas ao escândalo das “rachadinhas”, envolvendo o senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ). Durante a Operação Intocáveis, foram encontradas mensagens de Danielle Mendonça, ex-mulher do ex-PM Adriano da Nóbrega (assassinado na Bahia em circunstâncias comprometedoras e com indícios de queima de arquivo), conversando com Fabrício Queiroz, ex-assessor de Flávio, sobre o uso de um “funcionário fantasma” no gabinete.
QUEIMA DE ARQUIVO Durante a investigação da lavagem de dinheiro de Adriano, a viúva de Adriano, Julia Lotufo, foi pega em uma escuta telefônica falando sobre um “funcionário fantasma” no gabinete de Flávio. Essas evidências podem ser usadas para reabrir a investigação contra o filho do ex-presidente Jair Bolsonaro. A influência dos Bolsonaros contribuiu para anulação de grande parte das provas do caso pelo STJ e STF.
REFORÇO PARA INVESTIGAR As investigações sobre os assassinatos de Marielle e de Anderson continuam e com o reforço de sete novos membros da força-tarefa e com a colaboração da Polícia Federal. O bicheiro Rogério Andrade também se tornou um novo suspeito devido à sua ligação com o coordenador da força-tarefa, Ronnie Lessa. DÚVIDAS PARA CONFUNDIR
O MP-RJ está trabalhando para esclarecer o caso, enquanto enfrenta trocas de comando e crises internas. Outras investigações sugerem que o ex-vereador Cristiano Girão e o ex-deputado Domingos Brazão, que atualmente está afastado do TCE (Tribunal de Contas do Estado), podem estar envolvidos no crime, mas todos os três negam as acusações. Brazão também enfrentou uma denúncia por tentar obstruir a investigação do crime, mas a denúncia foi encaminhada para o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro devido ao seu foro especial como conselheiro. ERROS NA INVESTIGAÇÃO
De acordo com especialistas, a investigação dos assassinatos de Marielle e Anderson foram conduzidas de forma equivocada, justamente para proteger os criminosos. Durante o processo foram cometidos erros básicos que impediram a elucidação do crime. Segundo o jornal O Globo, duas pessoas que estavam no local do crime foram orientadas a se afastar e não foram convocadas naquele momento para prestar depoimento. Foram convocadas pela polícia após a publicação da reportagem.
Também houve problemas relativos à coleta e processamento de imagens de câmeras de segurança, como o próprio delegado que foi o primeiro responsável pelo caso, Giniton Lages, disse em depoimento à Justiça, informação revelada pela Folha de S.Paulo. Lages relatou que sua equipe tinha imagens que mostravam o percurso do carro em que estavam os executores do crime — mas apenas a partir de um certo ponto, o bairro do Itanhangá, próximo à Barra da Tijuca. As imagens não permitiam acompanhar o veículo desse local até o início da orla da Barra da Tijuca.
Meses depois, a polícia recebeu a informação sobre de onde o carro teria partido, uma região conhecida como Quebra-Mar, que fica justamente no início da orla da Barra da Tijuca. Ao revisitar o material coletado pelas câmeras, os agentes perceberam que havia um empecilho técnico que os impedia de avançar na leitura das imagens. "Revisitaram o banco de imagens, reprocessaram a imagem, descobriram que tinha um problema, colocaram numa ferramenta que era capaz de ler aquela tecnologia, que era ultrapassada, ela leu e o carro se revelou", disse Lages.
Quando os agentes se deram conta disso, voltaram ao Quebra-Mar e à avenida da orla, onde fica o condomínio de Ronnie Lessa, mas as câmeras não tinham mais as imagens do dia do assassinato. "Muito provavelmente nós íamos pegar o momento em que entraram no carro (...) Isso é um fato, não há como negar isso", afirmou. MANDANTES
De acordo com o Ministério Público, os trabalhos continuam e nos últimos três meses, a equipe colheu novos depoimentos para tentar chegar a quem orquestrou o crime. A força-tarefa também aguarda uma decisão do Supremo Tribunal Federal sobre a liberação de dados telemáticos do Facebook que são considerados importantes para o aprofundamento da investigação. O órgão reafirmou, em nota, o seu empenho e o emprego de todos os esforços para a obtenção dos elementos de prova a fim de alcançar os mandantes. LIGAÇÃO DOS ACUSADOS COM BOLSONARO No final de outubro de 2019, o Jornal Nacional divulgou uma informação que gerou mais tumulto na investigação. Segundo a TV Globo, um porteiro do condomínio Vivendas da Barra, onde morava Ronnie Lessa e onde o presidente Jair Bolsonaro tem casa, teria dito em depoimento que, no dia do crime, Élcio Queiroz esteve ali e disse, ao chegar, que iria à casa de número 58, que pertence ao presidente.
Ao receber Élcio na guarita, o porteiro ligou para a casa 58 para confirmar se o visitante poderia entrar, e alguém na residência autorizou a entrada do veículo. Em dois depoimentos à Polícia Civil do Rio, o porteiro disse ter reconhecido a voz de quem atendeu como sendo a do "Seu Jair", segundo o Jornal Nacional. Jair Bolsonaro estava em Brasília naquele dia. O porteiro disse, segundo a reportagem, que acompanhou Élcio pelas câmeras de segurança e viu que seu carro tinha ido para a casa 66, onde morava Lessa. Diante disso, ligou de novo para a casa 58, e ouviu da pessoa que atendeu que ela sabia para onde Élcio estava indo. Além desse depoimento, o caderno de registro da portaria mostra o número da casa de Jair Bolsonaro ao lado da placa do carro do visitante. Segundo o Ministério Público, provas periciais do áudio da chamada da portaria, que mostra, segundo o órgão, que Élcio teria ido para a casa de Lessa e teria sido o próprio a autorizar sua entrada. No entanto, entidades de perícia questionaram a qualidade técnica desse laudo. O inquérito sobre o depoimento segue sob sigilo. TROCA-TROCA DE DELEGADOS Na Polícia Civil, a investigação já foi chefiada por três delegados diferentes, o que pode também ter atrasado o andamento do caso. Giniton Lages ficou à frente por cerca de um ano e foi responsável, junto com o Ministério Público, pela prisão dos suspeitos de cometer o crime. Logo após a denúncia contra os suspeitos, Lages foi substituído por Daniel Rosa, que ficou no cargo por mais de um ano. À época, o então governador Wilson Witzel disse que ele "encerrou uma fase" e que seria enviado para a Itália para participar de um programa de intercâmbio sobre a máfia. Em setembro de 2020, Moisés Santana assumiu a investigação. Para especialistas, essas mudanças devem ocorrer apenas se ficar claro que a pessoa responsável não dá conta de fazer o caso avançar. Do contrário, são desvantajosas, pois a cada troca é preciso que a pessoa responsável se familiarize com os detalhes da investigação para então buscar possíveis caminhos de apuração. Marinete Silva, mãe de Marielle, diz que tem conversado com o atual delegado à frente do caso e que sente que ele está comprometido e fazendo um bom trabalho. TROCA-TROCA NO MINISTÉRIO PÚBLICO No Ministério Público, o caso também trocou de mãos. No início, estava sob a responsabilidade de Homero das Neves Freitas Filho. Meses depois, foi posto a cargo das promotoras Simone Sibilo e Letícia Emile, que estão ainda à frente do caso. Ainda no MP, em novembro de 2019, uma promotora que estava envolvida no caso — Carmen Eliza Bastos de Carvalho — se afastou depois que a imprensa veiculou postagens em suas redes sociais em apoio ao presidente Jair Bolsonaro, além de uma foto com Rodrigo Amorim, deputado estadual pelo PSL do Rio que quebrou placa em homenagem à vereadora. Carmen não participou da investigação, segundo o MP, mas passou a atuar na ação penal em que Ronnie Lessa e Élcio Queiroz são réus. Cabe lembrar que a Lei Orgânica Nacional do Ministério Público diz que é vedado aos membros do MP "exercer atividade político-partidária". Ao se afastar, a promotora disse que tinha feito isso voluntariamente por respeito aos pais das vítimas. SUBMETRALHADORA HKM P5 A perícia da Polícia Civil do Rio concluiu que a arma usada no crime foi a submetralhadora HK MP5. Essa arma é usada por algumas forças especiais de polícia e pela Polícia Federal. A investigação não apontou até o momento a origem da arma. A munição usada no crime foi desviada da Polícia Federal, mas ainda não se sabe como isso aconteceu. O lote UZZ18 havia sido vendido à corporação em 2006. O lote tinha 1,8 milhão de balas, muito além do permitido por lei, que é 10 mil. A fiscalização é de responsabilidade das Forças Armadas. Especialistas esclareceram por diversas vezes que um lote do tamanho do que foi usado torna impossível seu rastreamento. PROTEÇÃO À MILÍCIA
Até chegar aos acusados, a investigação sofreu um grande desvio de rota e suspeita de fraude. Por muitos meses, a principal linha de apuração buscava verificar se o assassinato teria sido cometido pelo ex-policial Orlando Oliveira de Araújo, conhecido como Orlando de Curicica, a mando do vereador Marcello Siciliano (PHS). Essa linha começou a ser perseguida quando o policial militar Rodrigo Jorge Ferreira prestou depoimento à Polícia Civil dizendo que teria visto os dois conversando sobre o assassinato e que Orlando teria matado Marielle a mando de Siciliano. Ferreirinha, como é conhecido, dizia que o motivo seria que Marielle estaria atrapalhando negócios ilegais de Siciliano na zona oeste do Rio, reduto da milícia. Essa linha não prosperou. Mais tarde, ele admitiu à Polícia Federal que o testemunho era falso, segundo o portal UOL. Ferreira e sua advogada foram denunciados pelo Ministério Público por obstrução de justiça. Orlando foi ouvido pelo Ministério Público Federal. Ele negou ter cometido o crime e disse que teria sido pressionado a confessá-lo pela Polícia Civil. Disse também que haveria na corporação um esquema de corrupção para impedir que investigações de homicídios ligadas ao jogo do bicho e à milícia fossem adiante. Foi em parte com base nisso que a então Procuradora Geral da República, Raquel Dodge, pediu que a investigação dos mandantes ficasse a cargo da Polícia Federal, algo que foi posteriormente negado pelo Supremo Tribunal de Justiça, que entendeu que as autoridades estaduais apuraram o caso devidamente. ESCRITÓRIO DO CRIME
Marielle foi assessora do deputado Marcelo Feixo até ser eleita em 2016. Freixo presidiu a CPI das Milícias instaurada em 2008 na Assembleia Legislativa do Rio e, desde então, passou a receber diversas ameaças de morte. O relatório final da investigação pediu o indiciamento de mais de 200 políticos, policiais, agentes penitenciários, bombeiros e civis. Antes de ser eleita, em 2016, Marielle foi assessora do deputado. A afirmação mais forte que uma autoridade fez até o momento sobre suspeitos da encomenda do crime veio da então procuradora-geral da República Raquel Dodge.
Em seus últimos dias no cargo, em setembro de 2019, Dodge denunciou o político do MDB e conselheiro afastado do Tribunal de Contas do Estado do Rio de Janeiro (TCE/RJ) Domingos Inácio Brazão e outras quatro pessoas por suspeita de envolvimento nos homicídios, entre eles, um policial federal aposentado, um policial militar e um delegado federal. Ela dizia que Brazão teria atuado para plantar a versão do assassinato que dava conta de que o crime teria sido encomendado por Siciliano. NOVAS TECNOLOGIAS
O Ministério Público do Rio (MP-RJ) voltou a tomar depoimentos e a reexaminar celulares, mediante o uso de tecnologias mais modernas, que foram apreendidos durante as investigações para elucidar o assassinato da vereadora Marielle Franco (PSOL) e do motorista Anderson Gomes, em março de 2018.
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