por Alexandre Costa (*)
As passeatas que rechaçam a obrigatoriedade das vacinas contra a covid-19 fazem parte de um movimento cada vez mais forte no mundo. Na Europa, o negacionismo cresce de forma assustadora mesmo diante de evidências e dos números que apontam para a necessidade de imunização. De acordo com as estatísticas, 90% das mortes por coronavírus atingem justamente aqueles que se opõem à vacinação. A França, considerada o berço da civilização, se curva diante da ignorância que caminha de braços dados com a morte.
Recentemente, mais de 200 mil pessoas foram às ruas de Paris, contrariadas pela obrigatoriedade da vacinação contra a covid-19. Além de entrarem em confronto com a polícia, os negacionistas atacaram postos de vacinação e locais onde são realizados testes para identificação do vírus. De acordo com as autoridades francesas, 12 postos foram alvo de vandalismo. Em meio à multidão, algumas pessoas levantavam cartazes, afirmando que a covid-19 é uma fraude mundial. A violência por parte dos grupos que negam a existência da ciência é uma realidade e preocupa as autoridades e os pesquisadores. Durante o protesto realizado em Paris, dois deputados que faziam campanha para incentivar a vacinação foram ameaçados de morte. Também foram registradas agressões a profissionais da imprensa.
Na França, a imunidade coletiva está ameaçada. Apenas 53% da população já tomaram as duas doses recomendadas. Com o surgimento da chamada variante delta, os epidemiologistas afirmam que o vírus só será vencido quando 90% da população estiver imunizada. Um dos fatos que chamou a atenção durante o protesto realizado em Paris, no dia 31 de julho - manifestação que levou milhares de pessoas pelo terceiro fim de semana consecutivo às ruas -, foi a ausência de um dos principais líderes do movimento contra o passe sanitário.
François Asselineau não compareceu ao protesto justamente porque estava com covid. O político se tornou uma referência para os franceses contrários à regra que exige a apresentação de documentos, comprovando a vacinação. O passe sanitário, nome do documento, é necessário para garantir a entrada em cinemas, museus, restaurantes, bares, hospitais e viagens de trem ou avião. Os cidadãos também podem apresentar um teste negativo de covid-19. A mesma regra obriga os profissionais de saúde a serem vacinados. De acordo com um levantamento divulgado pelas autoridades francesas, 16% da população se enquadra no perfil negacionista, o que talvez possa explicar a quantidade de pessoas que pagaram entre 250 e 500 euros para obterem atestados falsos. A informação foi revelada pela própria polícia do país, após ter identificado algumas redes de comercialização ilegal do passe. De acordo com a imprensa francesa, a polícia identificou pelo menos 400 pessoas envolvidas na compra de documentos falsificados. Foram também descobertos casos em que os atestados eram vendidos nos próprios postos de vacinação com a cumplicidade de funcionários do sistema de saúde. O esquema permitia inclusive a disponibilização de códigos de barras legítimos para registros falsos de vacinação. Até o início de agosto, um terço dos profissionais de saúde na França, que trabalham em hospitais, clínicas e casas de repouso ainda não haviam se vacinado, desprezando a campanha que iniciou há mais de sete meses. A situação na França acabou levando o governo a promulgar uma nova lei sobre vacinação. Mesmo diante da quarta onda de covid-19, centenas de pessoas protestaram contra a imunização em Nicosia, capital do Chipre, terceira maior e mais populosa ilha no Mediterrâneo. Centenas de pessoas foram às ruas por serem contrárias à decisão do governo de incluir as crianças de 12 a 15 anos na campanha de vacinação. O mesmo se viu na Itália, mesmo com o elevado número de mortes registrados no início da pandemia, manifestantes protestaram em Roma, em função das restrições aos que são contrários à vacinação e, em consequência, não tiveram acesso ao "passe verde", documento obrigatório para o ingresso em cinemas, museus, piscinas cobertas, estádios e restaurantes. Na Alemanha, o caso foi mais grave. Os organizadores de uma passeata contra a vacinação conclamaram os participantes a comparecerem armados aos protestos. Para evitar uma tragédia, as autoridades intervieram e conseguiram proibir as manifestações.
NEGACIONISMO E OS ATAQUES À DEMOCRACIA
De acordo com serviços de inteligência de diversos países da Europa e dos Estados Unidos, os negacionistas atuam de forma organizada, muitas vezes clandestinas, e utilizam plataformas digitais para transmitir seus discursos. São organizações como o QAnon, os ultraprotestantes, os antivacinas, os populistas de direita, os ecologistas adeptos de terapias alternativas, além de outros grupos que reúnem empresários, artesãos, desempregados e inclusive médicos. Entre eles, estão alguns mais conhecidos como os Décodeurs, na França, que reúne mais de 30 mil membros no Telegram, além das personalidades pró-conspirativas alemãs, como Attila Hildmann e Xavier Naidoo, com mais de 100 mil seguidores; e o britânico Charlie Ward, que divulga a cada quase quinze minutos a seus seguidores montagens pró-Trump, que conta com mais de 150 mil adeptos.
Estes movimentos geram preocupações constantes à segurança pública, em função da violência e das possíveis desestabilizações sociais e políticas que podem causar. Um bom exemplo dos prejuízos que os movimentos negacionistas podem causar à sociedade vem dos Estados Unidos. O QAnon é um ponto de convergência dos grupos de extrema-direita, reunindo pessoas que acreditam em óvnis, que pensam que a rede 5G será usada para controlar o povo. O QAnon é um movimento que surgiu em fóruns de extrema direita na deep web após a eleição norte-americana de 2016. Baseado em uma série de teorias da conspiração, faz ligações envolvendo políticos e personalidades à pedofilia e ao satanismo. O FBI (departamento federal de investigação norte-americano) chegou a tratar o QAnon como uma ameaça terrorista doméstica, em função do perfil militarizado e da violência presente nos conteúdos.
Desde 2017, as teorias do QAnon se espalharam pela web, por meio das redes sociais. Em agosto de 2020, o Facebook identificou violações às suas políticas e excluiu diversos grupos e contas diretamente ligados a esta organização, que se tornou mais conhecida durante a invasão ao Capitólio, em janeiro deste ano. O nome do grupo é uma alusão às mensagens criptografadas publicadas por um certo “Q”, supostamente um alto funcionário americano próximo de Trump. Uma das ações do QAnon foi a disseminação de mensagens falsas sobre uma rede de pedofilia comandada por democratas. Conhecido pelo apoio ao ex-presidente Donald Trump, o grupo vem se espalhando pelo mundo, fomentando ideias de extrema-direita e que são adaptadas aos interesses e à realidade de cada local. No entanto, independente de onde o QAnon se organiza, existem temas que são consenso para seus seguidores, como o surgimento da covid-19 e as conspirações sobre a vacina.
Uma das referências dos negacionistas, o documentário Hold-Up foi visto por milhões de pessoas na França. O filme é uma obra sintética e reúne diversas formas de conspiração do momento. Inúmeros fatos evidenciam que o negacionismo e as teorias conspiratórias estão cada vez mais organizados, buscando ocupar espaços políticos e nas organizações sociais. Um estudo realizado pela Fundação Jean Jaurès demostrou que o eleitorado de Marine Le Pen, a líder da extrema-direita francesa, é de longe o mais aberto às teorias da conspiração. Além de cooptar cada vez mais eleitores, os discursos populistas e as retóricas em torno das teorias conspiratórias encontram um terreno fértil entre os partidos de extrema direita da Europa. (*) Alexandre Costa é jornalista e responsável pelo www.esquinademocratica.com TEMPOS SOMBRIOS: A PANDEMIA E O NEGACIONISMO QUE SE OPÕE À CIÊNCIA E AMEAÇA A HUMANIDADE (PARTE 1) TEMPOS SOMBRIOS: DA COVID DOS NEGACIONISTAS DO TEXAS AO FOGO DOS TRIBUNAIS DA INQUISIÇÃO (PARTE 2)