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Até onde Safatle?

Foto do escritor: Alexandre CostaAlexandre Costa

Por Artur Barcelos *



Vladimir Safatle publicou no dia 10 de fevereiro um texto no jornal El País chamado Como a esquerda brasileira morreu (1) . Tudo muito coerente e teoricamente orientado. Mas, se Safatle me permite, quero ir um pouco além. Vejo nesse texto uma crítica clara a “conciliação de classes”, principalmente por recorrer a Marighella. Aqui, parece residir o limite de praticamente todas as análises do “fracasso da esquerda” no Brasil pós-golpe de 2016. Todas as auto-críticas afirmam que o erro do PT foi aliança ampla com setores da velha direita (Sarney, Renan, Temer, etc.). Esse foi um erro, não “o” erro. Vejo os companheiros e companheiras escamotear a estratégia de uso de acordos espúrios de caixa 2. Ou pior, ver isso como um pragmatismo, como única forma de vencer eleições e seguir a ˜causa maior”. Mesmo argumento já presente desde os tempos do mensalão. Vamos além. Depois volto a esse ponto. Safatle dá pistas, mas não chama as coisas pelo nome que tem:


“Como se fosse o caso de dizer que, no final, governo e oposição comungam da mesma cartilha, sendo distinta apenas a forma e a intensidade de sua implementação. Fato que já havíamos visto com o segundo Governo Dilma e sua guinada neoliberal capitaneada por Joaquim Levy”


E o que seria essa “mesma cartilha”? A negação do combate ao liberalismo. Não o neoliberalismo, que é a expressão mais nefasta, mas ao próprio liberalismo. Por não termos dado a atenção devida a Fukuyama e seu “O fim da história e o último homem” (ROCCO, 1992) estamos presos ao fato de que muitos acabaram confirmando a tese de que a democracia liberal seria o único sistema possível. Logo, o PT e praticamente toda esquerda brasileira acomodaram-se na democracia liberal e seus ditames. Ao fazer isso, abandonaram a construção do socialismo. Carregam o peso morto da queda da União Soviética. Não sabem o que fazer com esse fantasma. E por isso ficam discutindo Stalin X Trotsky em 2020. Jogaram toda a experiência soviética no lixo ao não encontrar os elementos que permitiam entender seu fim. E com isso não conseguiram construir uma alternativa ao liberalismo. Restou a Social Democracia. Mas essa linha foi deixada nas mãos do PSDB. Desde 1980, passando pelo fim da URSS em 1990, o PT nunca assumiu que seu limite estava dado pelo abandono da superação do modo de produção capitalista. Safatle reconhece que estes limites foram testados em algumas experiências, dentre as quais eu destacaria o Orçamento Participativo OP em Porto Alegre:


“Houve época que a esquerda, mesmo governando apenas municípios, conseguia obrigar o país a discutir pautas sobre políticas sociais inovadoras, partilha de poder e modificação de processos produtivos. Não há sequer sobra disto agora.”


Safatle prefere outro conceito para não ir ao grão de que o PT se tornou a força social-democrata possível na Democracia Liberal que aceitou ajudar a construir após a ditadura civil-militar. E assim nos coloca o “Populismo de esquerda”. É de fato um populismo de esquerda? O populismo clássico, de Vargas, Cardenas e Perón se apresentava como acima das contradições de classe, subterfugio para reformas dentro dos limites do liberalismo que, de fato, não pretendiam combater. Não há populismo de esquerda como política, apenas como construção da imagem do “líder”. Esse é um acerto de Safatle. Bolsonaro é o duplo de Lula no quesito líder popular. Mas porque não é seu oposto? Porque Lula e o PT abandonaram a superação do capitalismo como meta. E estão condenados a disputar valores difusos com os fascistas e os neoliberais, essa estranha aliança que está no governo:


“Coloquemos uma hipótese de trabalho: a esquerda brasileira conhece apenas um horizonte de atuação, este que atualmente chamaríamos de “populismo de esquerda”. Foi ele que se esgotou sem que a esquerda nacional tenha se demonstrado capaz de passar para outra fase ou mesmo de imaginar o que poderia ser “outra fase”. Entende-se por populismo de esquerda um modelo de construção de hegemonia baseado na emergência política do povo contra as oligarquias tradicionais detentoras do poder.”


Ao tratar do povo, Safatle nos mostra que este é composto de sujeitos com múltiplas demandas. Mas não vemos esse povo segmentado em classes. Essa diluição é fruto de uma operação ideológica dos liberais. Não há contradição de classes. Há lugares a serem ocupados através da meritocracia. Logo, um entregador de aplicativos e o herdeiro de um banco tem o mesmo horizonte de expectativas alcançável pelo esforço pessoal. Quando essa ideia cresceu e se consolidou começamos a perder a guerra. Não há liderança política capaz de construir unidade onde há individualismo de projetos de vida ou onde há uma fragmentação de pautas sem a construção de um eixo unificador único:


“Este povo é, na verdade, produzido através da convergência de múltiplas demandas sociais distintas e normalmente reprimidas. Demandas contra a espoliação de setores sociais, contra a opressão racial, contra os legados do colonialismo: todas elas devem convergir em uma figura que seja capaz de representar e vocalizar esta emergência de um novo sujeito político.”


Ao aceitar sem perceber a tese que nega a superação do capitalismo, através da luta de classes e da conscientização de como ela funciona, a esquerda brasileira caiu nos braços de setores liberais, como aponta Safatle:


“No entanto, o caráter nacionalista do populismo permite também a inclusão de setores descontentes da oligarquia, grupos da burguesia nacional dispostos a ter um papel “mais ativo” nas dinâmicas de globalização. Assim, o “povo”, neste caso, nasce como uma monstruosa entidade meio burguesia, meio proletariado. Uma mistura de JBS Friboi com MST.”


Safatle diz ainda que está no DNA da esquerda o caráter anti-revolucionário, gestado na adesão do PCB a “linha de Moscou” e o abandono da Revolução fora da URSS. Assim, quando a situação chega a um limite, a esquerda não sabe o que fazer “...quando precisa mudar o jogo e caminhar para o extremo. Sua inteligência não age nesse sentido, suas estruturas não agem nesse sentido, sua classe política não age nesse sentido. Seus movimentos de revolta perdem-se no ar por não ter nenhuma sustentação ou coordenação de médio e longo prazo.”


Volto ao ponto das estratégias para ser a Social Democracia, ainda sem admitir. Não estou entre os que negam o uso da máquina e os recursos advindos dela para enfrentar eleições cada vez mais caras e para bancar uma base no congresso ávida por cargos e dinheiro. Expediente comum no tipo de presidencialismo de coalizão, tende a crescer em volume quando a economia vive um “ciclo virtuoso”. E não era assim que Lula se referia ao êxito de sua política econômica? Haddad disse que era uma política de ganha-ganha. Mas quem ganhou o quê? E a que preço? O que sabemos é que a direita soube a hora de entregar o PT de bandeja ao moralismo nacional. E o PT passou a ser sinônimo de corrupção. Com esse passivo, não consegue sair da trampa onde entrou por vontade própria. O PT não é visto apenas como um partido corrupto a mais. Ele é o partido mais corrupto da história do país. Essa pecha, mais o golpe de 2016 que deixou a imagem de um partido escorraçado por salvadores da Pátria, marca a barreira a ser vencida se o PT quiser seguir no jogo da Democracia Liberal. Tudo indica que este é o caminho escolhido.


O que resta? O que temos. Mas até onde Safatle crê que a esquerda deveria ir? Até a ruputura revolucionária? Estaria Safatle disposto a pagar o preço do que parece sugerir? Quantos de nós estaríamos dispostos a pagar o preço? Quantos de nós temos acúmulo de reflexão para dar o salto rumo a outra sociedade?




* Artur Barcelos é historiador, arqueólogo e professor da Universidade Federal do Rio Grande - FURG

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