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As falsas canções que você fez pra mim, por Paulo Gaiger (*)

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Em 1492 Colombo chegou à ilha de Guanahani, na futura América, feito que íamos chamar de descobrimento e começos do novo mundo e, sem dúvida, o fim do mundo para os indígenas, ou seja, a cruz cravada no coração de cada indígena até a sua morte. Espanhóis e portugueses, padres, bispos, mercenários, violadores de mulheres, representando as coroas, os reis e a igreja vieram, ano após ano, matando os nativos, roubando o ouro e, depois, traficando o povo negro desde a África para o trabalho escravo com as bênçãos do Padre Antônio Vieira e do bom Deus. A história da América Latina teve seu início, meio e... até os dias de hoje ainda se mata, se viola e se escraviza. É muito provável que as meninas nativas daquele tempo de Colombo mirassem os enviados cristãos como as meninas yazidis olham os enviados do estado islâmico. Os reis, rainhas e papas dos séculos dos descobrimentos já não existem. Contudo, os padres, os bispos e, especialmente, os pastores se multiplicaram na tarefa de evangelizar as populações pobres para que aceitem a cruz da pobreza. Não há um canto sem um templo. Não existe mulher sem temor a Deus, sem temor às ruas e aos homens. Na América Latina as mulheres não valem nada. Igualmente, não valem nada os indígenas, os negros que escaparam do açoite, os LGBTQI+, os pobres do campo e das favelas urbanas. Se não existem reis para enviar mercenários, temos em América Latina as elites mais perversas, milionárias e suas tradições que, a bem da verdade, ocultam um passado de crimes, porém participam das decisões por melhoras para uma América Latina justa e desenvolvida. Rir ou chorar? Que realidade mais cínica e cinza. Latino América parece estar somente unida nas canções. Ou será ilusão? Nico Nicolaiewski cantava: “se você quer sinceridade, fique longe das canções”. Eu e meu amigo Alceu, mais o Fisher, cantávamos Armando Tejada e Cesar Isella: “Todas las voces, todas, todas las manos, todas, toda la sangre puede ser canción en el viento. Canta conmigo, canta, hermano americano, libera tu esperanza con un grito en la voz”. A esperança é uma carroça abandonada ou um relógio que anda para trás. Uma Argentina desacorçoada, elegeu o destruidor Milei, depois de uma experiência populista e terrível com Alberto Fernandez. Aqui no rincão gaúcho, muitos artistas da música nativista, cantadores do amor, da terra e da liberdade, apoiaram o candidato fascista à reeleição. Cuba, Nicarágua e Venezuela são outros exemplos de como mitigar a esperança e fazer as canções perderem o sentido. Cuba ficou atascada num tempo mormacento onde nada e ninguém se move. Não faz muito tempo que o governo de um homem só liberou as relações homoafetivas. Ainda é um dos países mais machistas da América. A revolução é gélida para os temas humanos. Homens não são homens se desprezam as mulheres, não existem homens-machos revolucionários. Nicarágua é emblemática no que se refere à traição de sonhos e projetos de vida. De Carlos Mejia Godoy se cantava: “Ay, Nicaragua, sos más dulcita esta fuerza, que la mielita de Tamagás; Pero ahora que ya sos libre, Nicaragüita; Yo te quiero mucho más”. Nicarágua já não é livre e vive uma tirania igual ou pior que a de Somoza. Lá, as mulheres não valem uma espiga de milho. Chaves e, depois, Maduro, são dois homens à frente da Venezuela bolivariana, outro homem, sim, da história. “Simón Bolívar, Simón, caraqueño americano, el suelo venezolano, le dio la fuerza a tu voz”, cantava o grupo Inti-Illimani. Entretanto, os dois são golpistas e tirânicos, os direitos humanos são uma miragem, os milicianos e os paramilitares uma realidade, a pobreza está dentro das casas e os ricos muito felizes. Já as mulheres, valem somente uma coisinha de nada que se pode jogar fora depois de usada. Milhares de venezuelanos fugiram para Colômbia, Brasil e Chile. Simón Bolívar, Simón, olha o que fazem os teus filhos! Caetano tem razão em cantar: “Será que nunca faremos senão confirmar a incompetência da América católica que sempre precisará de ridículos tiranos”. A direita e a esquerda na América Latina terminam por se sentar na mesma mesa, beber do mesmo vinho, deitar na mesma cama, montar o mesmo ardil. Homens! Todos os presidentes dos países da América Central são homens; menos em Peru, todos os países da América do Sul têm homens como presidentes; no Caribe, a testosterona transborda. As reuniões e cúpulas, em sua maioria, são integradas por homens. Ninguém pensa muito sobre isso: de que os fatos não mudam em razão disso? Frequentemente, depois de cada grande reunião, os milionários ficam mais ricos e a exploração dos povos e das florestas se intensifica. Todavia, “todo cambia”, como diz a canção de Julio Numhause, cantada por Mercedes Sosa: ¿Todo cambia? “Pero no cambia mi amor por más lejos que me encuentre, ni el recuerdo ni el dolor de mi pueblo y de mi gente”. Tratados e acordos assinados por homens são como palavras escritas na água. Fotos e fotos, manchetes e vaidade! Detrás da história, das políticas, das cúpulas, das crises, da criminalidade, das facções, da direita, dos fascistas, das elites, da esquerda obtusa e conservadora, que metas desenhar, que sonhos sonhar em uma paisagem em que metade da população da América Latina não é ouvida, não pode participar, está calada, violada nas ruas e dentro das casas? Ser mulher é um pesadelo diário. As metas sociopolíticas deveriam considerar, sobremaneira, a realidade das mulheres no novo ou fim de mundo de Colombo como princípio de todos os projetos e programas. Não haverá nenhuma transformação ou mudança sem que as mulheres sejam protagonistas, escutadas e tenham a liderança em suas mãos. Os homens, de verdade, temem a mudança, temem as boas transformações. “Dizem que a mulher é o sexo frágil”. Só que não! Colombo nunca mais!


(*) Paulo Gaiger é artista, cronista, Professor da Universidade Federal de Pelotas (UFPel), autor de A METÁFORA DAS FLORES (Ed.Viseu)

 
 
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