Talvez eu não pudesse viver numa cidade
onde eu a amasse incondicionalmente.
É preciso que, como um amante, ela
também seja imperfeita e arredia
Que me atormente entre caprichos
e sua sensualidade irresistível a beira rio.
É preciso do atrito dos corpos
e a fadiga das discussões sem fim
para depois, em silêncio, dar as mãos
novamente num apaziguar de amor.
Não poderia viver numa cidade
sem as surpresas do contraditório
e a paixão por suas ruas sinuosas
e o por de sol mais lindo da terra.
Onde viver de arte é um tormento
embora se viva prazerosamente
entre as suas artérias arborizadas
e o céu azul sem fim na primavera.
Não poderia viver em paz nem almejar
viajar para bem longe sem os teus encantos
para, anos mais tarde, querer voltar correndo
para os teus braços como numa canção febril.
Não poderia ter ido de mudança para São Paulo
se não odiasse como maltratas os teus filhos
e os açoita sem dó nem piedade humilhando
desde o amanhecer até a solitária madrugada.
Talvez eu não pudesse viver numa cidade
que aos seus filhos acolhe indistintamente
embora indiferente e voraz, feito cobra grande
se não fosse pelas tuas noites eletrizantes
e o calor dos palcos acesos como flores.
É necessário lutar para te decifrar diariamente
e a força para te domar como se matasse um
leão por dia, para te provar, exausta, o meu valor.
Te recompor caleidoscópio de volúpia
e morbidez de famintos a beira da sarjeta.
Te reconhecer madrasta e maternal
natureza oposta a vida numa vida compulsiva
sem descanso semelhante ao chão de fábrica.
Não poderia viver em paz se não te desejasse
extinta, para sempre, do meu corpo como
um veneno perigoso porque excitante
e maligno como qualquer droga ou sonífero.
Não seria completa em minha pobre vida
se não amasse e odiasse minhas duas cidades
como a alguma parte indesejada do meu corpo
tecido conjuntivo, pernas, pupila e íris da minha
descida ao inferno cotidiano e paraíso sem igual.
Seria feliz em Buenos Aire, Paris ou Parnaíba assim
como somos felizes no cartão postal da imaginação.
Não seria uma epopeia, apenas uma vida mansa.
Mas eu não preciso de uma vida mansa e sim
um circo ilusório e pragmático de atrações
bizarras e calafrios na espinha como na montanha russa.
Quando me canso de uma sempre posso voltar para outra
e assim, nesse jogo de opostos complementares, renovo
a minha sede aventurosa de perigo e motivação para
viver com a intensidade que a minha natureza precisa.
Não seria completa sem o amor e ódio que sinto
por São Paulo e Porto Alegre, com a fome de viver
em tuas esferas energizantes de calor e afeto
e tuas redomas de perplexidade e alento em meio ao caos.
Deuses da Chuva e Rua dos Cata-ventos, sublimar repulsa
e desejo é o que faço eternamente desde que me parto
ao meio entre essas duas cidades que me consomem
feito escrava numa pena de vida fragmentada e indivisível.
Não poderia viver onde não houvesse conflito
onde não pudesse repousar serena após o drama
nem tivesse a certeza de que meus amigos estão
dispostos como flores ou luzes na imensidão
daquilo a que eu sempre ansiarei como "o meu lar".
Porto Alegre, 21 de outubro de 2021.
Fotografias de São Paulo por Cristiano Mascaro, de Porto Alegre por Régis Silva.
(*) Nora Prado é atriz, poeta, professora de interpretação para Teatro e Cinema, atuou na Escola das Artes do Palco - SP.