AGÊNCIA PÚBLICA: MPF ACUSA 8 MILITARES E UM MÉDICO POR CRIMES COMETIDOS PELA DITADURA NO ARAGUAIA
- Alexandre Costa
- 20 de out. de 2021
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Reportagem de Vasconcelo Quadros, no site da Pública - Agência de Jornalismo Investigativo, postada na segunda-feira (18/10), revela as atrocidades cometidas pelas Forças Armadas durante a Guerrilha do Araguaia. Em dez denúncias encaminhadas ao Judiciário, cumprindo parte da sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) contra o Estado brasileiro, o Ministério Público Federal (MPF) resgatou a pauta mais incômoda para as Forças Armadas e o governo do presidente Jair Bolsonaro: a acusação de que, longe da versão de uma guerra na selva difundida pelos militares, o que ocorreu na Amazônia entre outubro de 1973 e final de 1974, na operação conhecida como Marajoara, foram assassinatos a sangue frio, com a ocultação e destruição planejadas dos corpos de oponentes. Oito oficiais e um médico foram identificados e responsabilizados pela execução e ocultação dos corpos de 17 guerrilheiros do PCdoB. As investigações também confirmam que, entre os 68 desaparecidos, 41 foram executados, 32 deles depois de passarem por prisões nas bases militares no circuito da guerrilha. Denúncias foram entregues ao Judiciário depois de 9 anos de investigação por ordem da Corte Interamericana de Direitos Humanos.
A Guerrilha do Araguaia é um capítulo à parte na história dos anos de chumbo. Organizada logo em seguida ao golpe de 1964, eclodiu em 12 de abril de 1972 com o ataque militar, foi o mais forte movimento da esquerda armada de resistência à ditadura, exigindo o envolvimento das três forças militares e o emprego de algo em torno de 5 mil homens. Os militares sabiam com clareza que naquela região inóspita estavam os quadros mais capacitados da esquerda e temiam que, se não fosse abortado, o movimento conseguisse em algum momento reunir força popular para mais à frente ameaçar a sobrevivência do regime ou, no mínimo, criar uma zona liberada em boa parte da Amazônia. A espinha dorsal da guerrilha, distribuídas em três destacamentos, instalados numa área com 6.500 quilômetros quadrados entre o Pará e Tocantins (mais de quatro vezes o tamanho da cidade de São Paulo) era formada por quadros orgânicos de peso do PCdoB, entre 18 e 20 homens, que receberam treinamento militar na China, daí a razão do foco ser considerado de viés maoísta.
MATANÇA
Segundo o MPF, os 17 guerrilheiros foram aprisionados em emboscadas, levados para as bases militares e, esgotados os interrogatórios, um a um ou em grupos transportados de helicóptero até os pontos de execução. Ao reconstituir o episódio, o MPF rompeu a lei de silêncio imposta aos órgãos estatais pela Anistia e, passou a acusar os militares como por um elenco de crimes: sequestros, torturas, assassinatos e ocultação de cadáveres. Duas das dez denúncias foram aceitas pela Justiça Federal, tornando Curió e Lício réus, mas acabaram suspensas pelo Tribunal Regional Federal da Região (TRF-1) sob a alegação de que esbarram na Lei da Anistia recepcionada pela Constituição.
A reconstrução dos episódios foi feita por um grupo de procuradores, com de sete a onze integrantes, que ouviu dezenas de testemunhas oculares, militares que participaram da repressão, camponeses coagidos a se tornarem guias do Exército, além de esmiuçar a vasta bibliografia já produzida sobre o conflito.
Uma das mais contundentes confissões feitas durante as investigações foi justamente de Curió. Num depoimento surpreendente à juíza federal Solange Salgado no dia 14 de outubro de 2015, em Brasília, ele sustentou que são verdadeiras as informações publicadas no livro Mata! O major Curió e as Guerrilhas no Araguaia, do jornalista Leonencio Nossa, apontando as execuções. “O próprio denunciado Sebastião Curió (…) declarou que autorizou a publicação do livro, tem conhecimento de seu conteúdo e o reconhece como verdadeiro”, anotaram os procuradores da República nas denúncias. Eles fizeram questão de destacar que Curió também “elaborou documentos acerca da ação das Forças Armadas na Guerrilha do Araguaia e, em 20 de junho de 2009, revelou parte de seus arquivos ao jornal “Estado de São Paulo”, tendo afirmado, segundo a reportagem, que o Exército executou militantes. Dos 68 integrantes do movimento de resistência mortos durante o conflito com militares, 41 foram presos, amarrados e executados, quando não ofereciam risco às tropas”, escrevem na denúncia. Curió abriu seu baú para o jornalista e, em entrevistas, narrou os principais episódios do conflito, revelando inclusive execuções das quais participou.
CRUELDADE GENERALIZADA
Última das operações, a Marajoara foi marcada por crueldade generalizada. Famílias inteiras que recebiam assistência de saúde e educação, além de orientação agrícola dos militantes do PCdoB foram presas, acusadas de apoiar a guerrilha. O MPF reproduziu relatório em que os militares ressaltam os primeiros resultados da Marajoara: “o inimigo foi surpreendido com a rapidez e com a forma como foi executado o desembarque e infiltração das patrulhas na mata. Em três dias 70% da rede de apoio estava neutralizada. No fim de uma semana o inimigo sofria as primeiras quatro baixas, e já havia perdido três depósitos na área da Transamazônica. O emprego de Helicópteros e Aviões de Ligação deu grande mobilidade à tropa e proporcionou rapidez na ação”, escrevem os agentes.
Omitem, é claro, que duas centenas de famílias de camponeses foram presas, torturadas e trancafiadas em buracos abertos nas bases militares. Cerca de dez agricultores foram mortos, outros desapareceram e dezenas deles, coagidos e sob ameaça de execução, foram obrigados a virar guias do Exército e participar dos assassinatos.
“O modus operandi adotado pelos agentes da repressão estatal no Araguaia (…) incluía a posterior ocultação dos vestígios dos crimes cometidos. Neste contexto, após as execuções, os corpos eram identificados e sepultados em determinados locais, de modo precário e às escondidas, ou abandonados na mata, dificultando a localização das ossadas, sem qualquer divulgação do fato ou comunicação aos familiares”, escrevem os procuradores nas denúncias. Eles concluem: “de fato, a ocultação dos cadáveres das vítimas foi cumprida à risca pelas Forças Armadas, tanto que, até os dias atuais, apesar dos esforços empreendidos, ainda não foi possível localizar os restos mortais dos militantes”.
