
Nesta terça-feira (18/8) faz dez dias que o Brasil vem acompanhando o caso da menina de 10 anos, moradora de São Mateus (cidade ao norte do Espírito Santo), que foi estuprada e engravidou do próprio tio. No dia 8 deste mês, a menina deu entrada no Hospital Estadual Roberto Silvares, acompanhada de um familiar. Ela relatou que desde os seis anos era vítima de violência sexual e que nunca denunciou por medo das ameaças.
Os exames confirmaram a gravidez em estado adiantado, com cinco meses. A triste história da menina vítima de estupro e que teve autorização da Justiça para realização do aborto, pois a gravidez representava risco iminente à sua própria vida, teve contornos ainda mais cruéis e dramáticos. Uma equipe de médicos de um hospital estadual em Vitória (ES) se recusou a fazer o aborto, alegando que a gestação estava muito avançada, com 22 semanas. A negativa por parte da equipe médica estava relacionada ao tempo de gestação e aos princípios éticos e morais para realização do aborto.
INSENSATEZ, HIPOCRISIA E FALSA MORAL
A partir daí, a insensatez se juntou à hipocrisia e juntas, em nome da falsa moral, tentaram imputar à vítima, uma criança de 10 anos, a culpa pela violência a que foi submetida. Embora o caso da menina de São Mateus tenha se transformado em uma guerra ideológica e a gravidez de crianças venha sendo tratado como algo inédito, existem dados oficiais que revelam uma amarga realidade no país. Em média, são registradas no Brasil seis internações diárias por aborto envolvendo meninas de 10 a 14 anos e que engravidaram após serem estupradas.
ESTUPRADA DESDE OS 6 ANOS Depois de ter estuprada desde os seis anos de idade, a menina grávida do tio ainda viu a avó ser assediada por lideranças religiosas que tentavam convencer a família a não autorizar o procedimento de interrupção da gravidez. Acolhida e amparada legalmente, a menina que sofreu em função da negligência dos seus próprios familiares estava protegida. O procedimento de aborto legal foi marcado para o dia 17 de agosto, em uma maternidade pública do Recife. Tão logou souberam do local da realização do aborto, um grupo de fundamentalistas religiosos católicos e evangélicos se deslocaram até o hospital e deram início a uma manifestação. Ativistas contra aborto tentavam impedir a interrupção da gestação, gritavam e tentaram invadir a unidade. O protesto começou antes mesmo que a menina, acompanhada de sua avó, chegasse ao local. Ele foi convocado por redes sociais. A ativista bolsonarista Sara “Winter” Geromini expôs dados pessoais da vítima nas redes, o que é ilegal. Perfis de Sara foram tirados do ar na noite da segunda-feira (17/8).

SOBRE A GRAVIDEZ A equipe que atendeu a menina afirma que ela não desejava dar prosseguimento à gestação. "Ela apertava contra o peito um urso de pelúcia e só de tocar no assunto da gestação entrava em profundo sofrimento, gritava, chorava e negava a todo instante, apenas reafirmando não querer”. O relato foi extraído da decisão judicial que autorizou o procedimento de interrupção da gravidez.
MANIFESTAÇÃO DE BOLSONARISTAS
O médico Olímpio Barbosa, responsável pelo procedimento que interrompeu a gravidez de uma criança de 10 anos que foi estuprada pelo tio, reagiu com indignação ao protestos de bolsonaristas na porta do hospital, tentando impedir que o aborto, autorizado pela Justiça, fosse realizado. Barbosa disse que sentiu imensa tristeza ao se deparar "com pessoas que defendem a vida chamando a criança de assassina, querendo fazer justiça dessa forma, logo em uma maternidade que acolhe mulheres em risco, fazendo barulho em um hospital com 104 mulheres internadas. Nunca passei por nada parecido", ressaltou após ter realizado o procedimento, no domingo à noite (17/8), no Centro Integrado de Saúde Amaury de Medeiros (Cisam-UPE), em Recife, que é referência estadual nesse tipo de procedimento.

PRISÃO DO ESTUPRADOR O tio da menina, acusado de abusar de menina de 10 anos, gravou um vídeo antes de se entregar à Polícia, em que pede que sejam realizados exames no avô e em outro tio de criança. Vídeo com insinuação a demais familiares foi publicado no Twitter e teria sido gravado antes de sua prisão, na madrugada desta terça-feira (18/8). O vídeo foi publicado por alguns perfis no Twitter, entre eles o do Anonymous Brazil. O tio da menina afirmou que estava em Betim (MG). Ao ser preso, o homem afirma que entrou em contato com a polícia para que fosse capturado e pediu que sejam realizados exames também nos demais parentes citados por ele.
ABORTO E AS DIFERENÇAS SOCIAIS Segundo o médico, cerca de 50 interrupções de gravidez são feitas por ano no Cisam-UPE e é comum meninas de 11 a 12 anos procurarem assistência médica para uma gravidez vinda de uma violência sexual. "O mais importante é que ela não queria, foi torturada, obrigar uma criança a ter uma gravidez forçada é um absurdo", disse. O médico Olímpio Barbosa afirmou também que há uma "hipocrisia" no assunto de interromper gestações vindas de estupros. "A classe alta procura o aborto com maior frequência do que a classe desfavorecida. O Brasil é o país da hipocrisia. A defesa da vida é uma falácia. Se consideram que o embrião tem vida, deveriam estar nas portas das clínicas de reprodução humana, que descartam milhares de embriões", pontuou.
Embora o caso tenha virado pano de fundo de uma briga ideológica e venha sendo tratado como algo inédito, dados oficiais revelam que ocorrem no Brasil, em média, seis internações diárias por aborto envolvendo meninas de 10 a 14 anos que engravidaram após serem estupradas. Esses casos envolvem procedimentos feitos no hospital e internações após abortos espontâneos ou realizados em casa, por exemplo. Se o número parece alto para quem não acompanha o assunto, ele é pequeno perto da quantidade de estupros de crianças e adolescentes que ocorrem no Brasil: a cada hora, quatro meninas de até 13 anos são estupradas no país, segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2019.

RISCOS DA GRAVIDEZ EM MENINAS
No mundo inteiro, os médicos consideram a gestação e o parto em meninas entre 10 e 13 anos mais arriscados do que a interrupção da gravidez, pois nesta idade ainda estão em fase de crescimento. Os órgãos internos ainda não estão plenamente desenvolvidos. A bacia, por exemplo, não está completamente formada e pode impedir a progressão do trabalho de parto. Ou seja, o parto traz riscos para qualquer mulher e em qualquer idade. No caso de meninas, o parto é ainda mais perigoso.
Um estudo feito com jovens gestantes na América Latina e publicado no American Journal of Obstetrics and Gynaecology, revela que as grávidas com 15 anos ou menos estão mais propensas a desenvolver anemia grave, além dos riscos elevados de hemorragia pós-parto. Também existe uma probabilidade dos bebês nascerem pequenos, em comparação ao período gestacional. O estudo revela ainda que as chances de morte neonatal precoce são maiores em gravidez nessa faixa etária. Os apontamentos do estudo podem ser agregados a outros bem conhecidos pela medicina, como o fato da gravidez entre jovens de 10 a 15 anos aumentar os riscos de aumento da pressão arterial.
NATURALIZAÇÃO DA VIOLÊNCIA
De acordo com dados do Sistema de Informações Hospitalares do SUS, do Ministério da Saúde, a cada dia são realizados, em média, pelo menos seis abortos em meninas de 10 a 14 anos, no Brasil. Só em 2020, foram registradas 642 internações. A média anual no país é de 26 mil partos de mães com idades entre 10 a 14 anos. Desde 2008, foram registrados quase 32 mil abortos envolvendo meninas nessa faixa etária. Se forem consideradas as 20 mil internações nas quais constam dados de raça ou cor de pele, 13,2 mil envolviam meninas pardas (66%) e 5,6 mil, de brancas (28%). Esses dados incluem abortos realizados por razões médicas, espontâneos e de outros tipos.

Das 20 cidades com mais internações em números absolutos, todas são capitais, exceto Duque de Caxias (RJ), Feira de Santana (BA) e Campos de Goytacazes (RJ). Não há dados disponíveis sobre o sistema privado de saúde. Casos de estupro (não só de crianças) são uma das três situações em que o aborto é permitido no Brasil. As outras duas são anencefalia ou risco de vida para a mãe. Nos últimos dez anos, o Brasil registrou, em média, uma interrupção de gravidez por razões médicas por semana envolvendo meninas de 10 a 14 anos. Em 2020, foram ao menos 34 ocorrências nesta faixa etária e 1.022 incluindo mulheres de todas as idades.
GRAVIDEZ NA ADOLESCÊNCIA Quando uma gravidez acontece na fase inicial da adolescência, pode trazer consequências emocionais, sociais e econômicas para a saúde da mãe, do pai e do recém-nascido. No Brasil, praticamente três em cada dez meninos e meninas iniciam a vida sexual entre 13 e 15 anos (PeNSE 2015). O resultado pode ser desde o risco de contrair uma infecção sexualmente transmissível até uma gravidez precoce. Em 2018, 21.154 bebês nasceram de mães com menos de 15 anos de idade. Apesar do número estar caindo, essa redução só começou a ocorrer a partir de 2015, quando foram registrados 26.701 nascimentos. De lá para cá, a queda é de 27%, enquanto que na faixa etária de mães entre 15 e 19 anos a queda ocorre desde o ano 2000, chegando a uma redução de 40% (passando de 721,6 mil para 434,6 mil).