A LIÇÃO DOS SUPRIDORES, POR NORA PRADO (*)
- Alexandre Costa
- 20 de mai. de 2022
- 3 min de leitura

Terminei de ler Os Supridores, primeiro romance de José Falero, com aquele gostinho de quero mais, típico de quando nos encantamos pela obra e pela narrativa do autor. Numa linguagem que mescla língua culta e língua da periferia, Falero se equilibra entre o narrador e os personagens desta aventura urbana para criar uma história dura, triste e cruel que espelha a desigualdade social e a total falta de perspectiva dos pobres da periferia porto alegrense. O drama de Pedro, Marques e seus companheiros, poderia se passar em qualquer grande cidade brasileira, mas ao localizar na capital gaúcha, a visualização de quem nela vive fica ainda mais viva e presente para quem mora aqui.
A história inicia no verão escaldante de 2009 e termina no auge do inverno de 2013, mostrando a ascensão e queda de um grupo espremido entre duas únicas escolhas, possíveis, para ingressar no mundo adulto. Entrar para o crime ou se submeter aos empregos e subempregos de um mercado de trabalho, perverso, que mais se assemelha à escravidão moderna, por conta dos baixos salários, da exploração sem limites e da monotonia laborial implícita.
Embora tenham elegido o mundo do trabalho, as condições experimentadas na faina diária são tão humilhantes e degradantes que, Pedro e Marques, decidem entrar para o crime. Mas ao invés de largarem o emprego de supridores numa grande rede de supermercados da capital, eles vendem maconha nas horas vagas e com o auxílio de mais alguns comparsas escolhidos a dedo. E assim, numa teia do submundo capitalista, os dois começam a fazer dinheiro e passam a aproveitar o mínimo de conforto, lazer e despreocupação que uma vida digna é capaz de produzir.
Decididos a abandonar a vida criminosa, tão logo alcancem o suficiente para investirem em outros negócios, a trama acaba dando uma rasteira no protagonista, Pedro, fazendo com que ele decida pagar uma injustiça na mesma moeda recebida. Desse ponto, em diante, a narrativa fica eletrizante e adentramos, ainda mais, pelas entranhas da marginalidade dominante onde a vida humana não vale nada e somos capazes de tudo.
Do ritmo modorrento e automatizado do início até as faíscas fatais do epílogo, somos tragados para dentro de um cenário conhecido, mas, cujos personagens, na maioria das vezes, invisibilizados pela cultura neoliberal excludente, os transformam em massa passiva e obediente. No caso, adentramos nas taperas e vielas sujas, das regiões desamparadas da Lomba do Pinheiro, Vila Lupicínio Rodrigues e Vila Planetário para nos identificarmos com seus personagens sem brilho nem vez, atormentados pelos dramas cotidianos da fome, frio e falta de dinheiro para o básico. Essa lente de aumento sobre a falta de horizontes no coração da miséria nos arrebata pela empatia e nos revela sobre o entendimento que muitos tem sobre essa estrutura perversa da qual fazemos parte. O choque econômico, cultural e social produzido é necessário para que, talvez, outros, além de uma classe média culta e instruída, se dê conta de que já chegamos no fundo do poço, faz tempo, e que precisamos urgentemente retornar às políticas públicas de inclusão e bem-estar social para a maioria da população de baixa renda. Retomar essa direção, do ponto de vista político, é ponto pacífico e absolutamente necessário para interromper a famigerada roda da miséria humana.
Isso se torna ainda mais eloquente quando o próprio autor é um exemplo vivo dessa exclusão social narrada no romance. José Falero, praticamente um autodidata, fugiu da escola pública por absoluta ineficácia do sistema em acolher e aprender com os saberes e conhecimentos alheios. Foi ler e aprender a vida por conta própria. Sorte a sua e a nossa não entrou para o crime, mas para a literatura que domina com maestria. Não é admirar a verdade e propriedade com que descreve em detalhes os diversos aspectos dessa realidade brasileira opressora traiçoeira. Não sem humor e sarcasmo, e com a esperança resistente dos que teimam em vingar, ele nos oferece um quadro vivo e atual do que nos transformamos como sociedade.
Não vejo a hora de ler os outros livros do autor, Vila Sapo e Mas em que mundo tu vive? Afinal, que seja pela literatura, que transforma dor em arte, que possamos reconhecer a nossa humana desumanidade.
Porto Alegre, 20 de maio de 2022.
(*) Nora Prado é atriz, poeta, professora de interpretação para Teatro e Cinema, atuou na Escola das Artes do Palco - SP.