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Foto do escritorAlexandre Costa

A GUERRA PELA OPINIÃO PÚBLICA, POR JORGE BRANCO (*)


Um dos fenômenos mais importante das relações de poder no mundo neste século XXI é a emergência da extrema direita no centro das relações políticas. O quadro de grave crise econômica é o ambiente que emoldurou esta ascensão política. Mergulhada em uma crise de estagnação, a economia mundial deu as condições para a consolidação da supremacia e hegemonia de determinadas frações empresariais sobre as demais e sobre o mundo como um todo.


Nos países centrais, com extensão ao resto do mundo de mercado, as frações empresariais que dominam o circuito dos investimentos financeiros passaram a ditar as regras da economia e da política. O controle dos capitais e dos bancos centrais nacionais capacitou a essa fração a submeter e “criar” vários governos e maiorias parlamentares pelo globo. Em duas décadas o mundo foi vitimado por um acelerado processo de regressão dos direitos protetivos. Essa dinâmica colocou em crise a democracia e os Estados sociais, por mais precários e dissonantes que fossem.


Essa estratégia regressiva obviamente não se daria sem uma batalha política e resistências. Seria, portanto, necessário uma vanguarda política para sustentar tamanha regressão no mundo de mercado, mesmo nos países periféricos. Construir-se um partido orgânico da regressão foi essencial para esta mudança, ensaiada no fim do século XX por Margaret Thatcher, mas que conheceu sua maturidade neste século.


A extrema direita se armou de um programa neoliberal para a economia, o que lhe permitiu apresentar-se confiavelmente para o rentismo, e um programa reacionário e conservador na política, o que lhe permitiu constituir sua base, ou clientela, eleitoral na sociedade. Essa nova extrema direita permitiu, em países como o Brasil, a ampliação do peso político de frações empresariais da periferia do sistema capitalista. Uma ascensão da burguesia agroexportadora, dos setores vinculados à exploração primária de minérios e garimpo e do comércio de produtos de baixa densidade tecnológica. Um fortalecimento da lúmpen burguesia, em uma fronteira entre o atraso e a transgressão.


O resultado é que a economia brasileira, como em outros casos, empregou menos, criou menos, destruiu mais, pagou menores salários, contribuiu menos com os sistemas sociais e concentrou muito mais riqueza. Isto por si só não deveria gerar apoio na sociedade. Contudo a arregimentação de apoios na opinião pública, obviamente, é essencial para obter-se as condições políticas para que as reformas regressivas sejam postas em prática.


A extrema direita apostou na mobilização do terror e do ressentimento social para obter esse apoio. No universo da cultura política revitalizou o medo à ruptura sobre a família, ao comunismo, à corrupção, à desordem social, ao conhecimento e à perda de liberdade religiosa. Construiu retoricamente a esquerda, o PT, o Lula, a Dilma, a democracia, os governos petistas como a origem dos ataques aos seus valores e os responsáveis diretos pela crise econômica e pelo desemprego. Estratégia semelhante, se não igual, à Trump e Orbán e outros reacionários que ascenderam ao governo ou a posições influentes.


Essa mobilização do medo e associação ao rentismo são as chaves da ascensão política da extrema direita, que cresceu como alternativa aos sistemas políticos dominantes. Soube catalisar os efeitos perversos da incapacidade da direita tradicional e a morosidade da democracia. Se apresentou como a direita mais capaz para eliminar os medos e os “responsáveis”.


A extrema direita apostou na estratégia de mobilização da opinião pública sem a mediação dos partidos e parlamentares tradicionais, se credenciou como uma oposição do sistema. Nas palavras de Gianroberto Casaleggio, um empresário da tecnologia e da comunicação política na Itália, “a política não me interessa, me interessa a opinião pública”[1].


Para isso foram decisivas as rupturas com as formas e métodos da política tradicional e uma ligação direta com o eleitor desinformado e amedrontado. A redes sociais ofereceram a tecnologia devidamente inovadora para isto. Contudo essa tecnologia somente teve este impacto porque no campo da política e dos jogos financeiros mundiais manteve, mais ou menos, desregulamentada. Um mundo onde as preferências dos eleitores foram organizadas politicamente, sem qualquer freio moral ou ideológico, em favor dos líderes de extrema direita. A política higienizada pelos não políticos, técnicos e conservadores cresceu na preferência de grande parte da opinião pública do mundo e também do Brasil.


A liberdade de movimento no campo da comunicação é, portanto, essencial à extrema direita. Por isso mesmo, junto com as grandes empresas proprietárias das mais populares redes sociais, a luta pela não regulamentação política é decisiva para o poder econômico ter supremacia na batalha da comunicação pública. As notícias falsas não são suficientes, por si, para justificar o peso político da extrema direita, do bolsonarismo e do reacionarismo. É necessário poder abusar da força econômica e vencer a disputa quantitativa da comunicação. É essencial chegar mais vezes a mais pessoas, regularmente, para coesionar essa clientela social.


Essa dinâmica dá a dimensão imensa do debate sobre o Projeto de Lei 2630/2020 que propõe regulamentar o uso da Internet, decisivo para o combate à regressão promovida pela extrema direita. Há inúmeros apontamentos críticos por organizações e lideranças progressistas sobre aspectos do PL. Contudo, de um ponto de vista democrático, é uma posição bem mais favorável debater tais aspectos em um contexto de regulamentação e transparência sobre o uso das redes sociais do que nesta situação elitista gerada pela anomia nas redes. A capacidade de conter o abuso do poder econômico e as informações falsas precisa ser ampliada de modo a obstruir esse processo de abastecimento de apoio na opinião pública à extrema direita e à regressão.


O centro efetivo do debate não está em censurar opiniões nas redes sociais, me parece que este aspecto seja mais uma evidência da falsificação de informações. O que vejo nos detratores da ideia de regulação é o correlato do debate que opõe liberdade à democracia: a defesa da desigualdade como condição. A democracia, como sistema de construção de direitos, é a materialização possível da liberdade social em oposição à ideia da liberdade derivada da inexistência de regulamentação. Ou seja, da liberdade sem contenções, a liberdade apenas do mais forte. Esta interpretação é a própria falsificação da ideia de liberdade, a qual passa a ser a coroação da desigualdade de direito já que no plano do fato já o é. Não há liberdade para todos quando não há regras a pactuar procedimentos que aproximem as condições e direitos de todos e a liberdade quando não é para todos é apenas supremacia.


Se vista em processo, a aprovação do PL 2630 está em continuidade com a obstrução da intentona golpista de 8 de janeiro. Trata-se de defender a democracia e derrotar a extrema direita, iniciado com as eleições de 2022, como condição para reiniciar uma dinâmica de restauração de direitos fundamentais e de um modelo de desenvolvimento, no mínimo, igualitarista. O projeto precisa voltar logo à pauta da Câmara dos Deputados para ser analisado em uma conjuntura de enfrentamento ao golpismo.


[1] EMPOLI, Giuliano Da. Os engenheiros do caos. São Paulo: Vestígio, 2020.


(*) Jorge Branco é Sociólogo, Mestre e doutorando em Ciência Política. Diretor Executivo da Democracia e Direitos Fundamentais.

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