Quando dou comida aos pobres, me chamam de santo. Quando pergunto por que eles são pobres, chamam-me de comunista (Dom Hélder Câmara).
Certa vez minha avó me recriminou por conta de minha arenga contra as injustiças e desigualdades sociais. Eu devia ter uns 16 anos e levava nas mãos todas as bandeiras socialistas e democráticas que serviriam para, ilusoriamente, sepultar a ditadura civil/militar. A velhinha era devota e frequentava as missas da catedral de Santa Maria e, além do mais, embora não fosse rica nem nada disso, fazia muita caridade. Contrariada com o neto que discursava de que a caridade apenas encobria a permanência de estados de pobreza e blá blá blá, resmungou com algo assim que minha memória tenta resgatar: “Mas, e se acabarem com a pobreza, como vamos fazer caridade?”. Sem querer e sem maldade, ela trazia para a reflexão os séculos de um Brasil de servidão, acostumado às paisagens da varanda da Casa Grande na hora do chá enquanto a mucama servia e outros pretos trabalhavam horas a fio no café, no charque, no canavial, erguendo casarões e igrejas. “Bons tempos aqueles em que o país produzia milhares de pobres para o futuro, sem dor de consciência”, comentaria algum nostálgico escravagista. “Veja meu senhor, agora eles entram assim descaradamente na Universidade! Alguns até, imagine o senhor, são colegas de meus netinhos. Pode uma coisa dessas? Até a criada tem carteira assinada e aquela gentinha de lá, tá vendo, recebe bolsa família. Acabou o chá?”. Dizem que foi Dom João VI quem trouxe junto com o carnaval, perto de 10 mil cortesãos desacostumados ao trabalho, o beija-mão e a adulação do poder para as terras brasileiras, uma política autocrata e sem rumo, uma economia apoiada na escravidão e na distribuição de títulos hereditários, insígnias e comendas. Nem os movimentos liberais que mandaram o rei de volta para Portugal, conseguiram interromper os caprichos do poder, o gosto pelo golpe e a política de bajulação e reverência. Ao contrário, adotaram os costumes e modos da corte, os conchavos e os discursos messiânicos. De tudo e muito mais, herdamos uma ausência de caráter, uma venalidade fincada no andar de cima, mesmo que, de fato, estejamos no lodo do mais fundo dos buracos. É de onde lançamos censuras e espezinhamos pobres e diferentes, porque nos identificamos com o poder e trabalhamos pela corte, admiramos o tratamento diferenciado e privilegiado. No presídio central não há nenhum rico. Um juiz exigiu uma punição a uma agente de trânsito ao ser parado por uma grave infração. A mulher foi condenada por abuso de autoridade por ter dito que o juiz não era Deus! Ora, ora, como não? Nossa justiça branca às vezes protege discípulos com preleções jurídicas que não chegam a nenhum pobre coitado. “Afrodescendentes de comunidades quilombolas não servem nem para procriar", vociferou um fascista e ex-presidente da República. “O fascismo é fascinante, deixa a gente ignorante e fascinada”, cantavam os Engenheiros do Hawaii. A consciência que o Brasil não construiu em séculos de escravidão, hoje faz uma falta danada. O país já devia ter dado um basta aos desmandos e privilégios da corte. A questão de fundo, talvez, que sustenta a modorra no lodo e na fantasia do andar de cima, não é a de ser contra os privilégios e injustiças, mas o desejo de alcançá-los e poder cometer abusos impunemente e ainda ser admirado. “Veja, senhor, aqueles desordeiros na rua! Que coisa! Vamos pretinha, serve mais um chá! Ué, onde se meteu essa criada?”.
(*) Texto publicado no livro “Não vá ao supermercado nos domingos” (ed. Traços&Capturas – 2019).