Observando as discussões sobre as grandes organizações que promovem fakenews, deepnews, fotos e vídeos criados pela inteligência artificial, me preocupa um outro lado da moeda e uma pergunta aparece como central: por que as pessoas em geral estão tão predispostas a aceitar qualquer absurdo que as mídias sociais espalham? Afinal, com todos os problemas que enfrentamos, nunca fomos tão formalmente educados como somos hoje, nunca tivemos acesso a tantas informações de boa qualidade como temos atualmente. A despeito de tudo, por que estamos completamente disponíveis a aceitar qualquer estultice?
Hoje tive uma experiência que me fez pensar que talvez estejamos tratando este problema de maneira equivocada. De forma alguma estou minimizando o complexo problema das mídias em mãos de conglomerados de extrema-direita, do fanatismo religioso, do fundamentalismo ideológico, mas quero trazer a questão para um nível bem mais simples.
Volto à minha experiência para seguir com meu argumento. Em uma viagem de Uber em Porto Alegre, o motorista e eu começamos a falar do clima: está frio, está quente, vai chover, não vai chover. Uma conversa típica nestes casos. Logo o motorista passou a falar da enchente que assolou o estado em maio e contou: “Ontem, um passageiro que foi voluntário na vizinha cidade de Canoas me disse que há mais de 2000 mortos escondidos pelo governo, e que ele mesmo amarrou diversas pessoas em postes para não desaparecerem. Falou ainda que o governo e a imprensa escondem este fato e que o governo tem, por lei, dois anos para identificar estas pessoas”.
Frente a tanto desvario, retruquei: “o senhor sabe, eu não acredito nisto”. E o motorista respondeu: “mas o meu passageiro viu!”. Então eu formulei algumas perguntas para ele: “estas 2000 pessoas não teriam família, amigos, vizinhos que sentissem falta deles?” E ele respondeu: “mas a imprensa esconde!” Eu continuei: “será que alguém não teria denunciado isso nas redes sociais? Afinal pouca gente no mundo não tem um pai, uma mãe, um filho, uma irmã, um sobrinho, um colega de trabalho, um amigo…” Ele repetiu: “mas governo escondeu”. Aí eu disse: “veja bem, o governador do Estado, o Eduardo Leite, e o presidente da República, Lula, são adversários políticos. Se o Leite tivesse escondido 2000 cadáveres, o governo Lula não denunciaria? E Se Lula tivesse escondido dois mil cadáveres, o Leite não denunciaria?”
Então, pra minha surpresa, o motorista falou: “sabe, a senhora tem toda razão! Que loucura, não tem nem lugar para colocar tantos mortos! O governo precisaria alugar muitos caminhões frigoríficos, e colocaria onde? As pessoas dizem cada coisa e a gente acredita! Mas ele disse que viu…” E respondi: “certamente seu passageiro ouviu falar”.
Eu já tinha ouvido esta história, contada pelo funcionário de um estacionamento, só que, daquela vez, um amigo dele tinha visto os cadáveres espalhados pelas ruas. Naquela oportunidade, não tive tempo e/ou disponibilidade para desmanchar a história. Mas hoje foi diferente, e não foi necessário fakenews, deepnews ou Elon Musk para o motorista acreditar no absurdo, nem para eu convencê-lo de que aquilo era um absurdo.
Este acontecimento cotidiano e sem importância diz muita coisa do mundo em que estamos vivendo e da fundamental e necessária reconstrução da esfera pública. As pessoas não precisam de Elon Musk para acreditar em absurdos e nem é necessária uma tese acadêmica para retomarmos uma vida política que fale com as pessoas, que escute, pergunte, dê possibilidade para elas pensarem.
A informação do motorista do Uber foi construída por um discurso fundamentalista de extrema-direita que joga contra os políticos e contra o sistema, que fala de governo num sentido abstrato (que é sempre o governo federal), mas que toca em coisas muito sensíveis a todos, como o abandono de pessoas mortas pelas ruas. Urge que este discurso seja desconstruído, falando com as pessoas diretamente, contrapondo argumentos, trazendo um mínimo de racionalidade para as suas vidas, inundadas por imundícies, para ser leve.
Não é uma tarefa fácil desconstruir discursos melodramáticos, assustadores, mas é preciso fazer isto, temos de falar sobre o cotidiano das pessoas, interrogá-las. Não adianta ter planos mirabolantes, não adianta prometer vida melhor, ninguém mais acredita nisto. Precisamos reinventar a política. Nas eleições municipais, teremos oportunidade de ser propositivos a partir da cotidianidade das pessoas. Precisamos ser novos e novas. De nada adianta ficar falando no Instagram com voz protocolar e olhar melodramático. Isto só colabora para que alguém acredite em 2000 mortos flutuando pelas águas do Guaíba…
* Céli Pinto é Professora Emérita da UFRGS; Cientista Política; Professora convidada do PPG de História da UFRGS.