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A BAILARINA - PARA QUE NÃO SE ESQUEÇA, PARA QUE NUNCA MAIS ACONTEÇA


Em tempos sombrios, rescrevi um conto que havia feito já faz algumas décadas. É uma ficção e foi baseado em acontecimentos reais. Em 1964, no final de março e início de abril, o Brasil era vítima de um golpe militar. A ditadura calou, torturou e assassinou milhares de pessoas. Este conto é uma adaptação de uma situação real, ocorrida durante a prisão do meu pai, o médico psiquiatra Bruno Mendonça Costa, que hoje está com 83 anos. Também é uma referência à minha irmã, Rosangela e à minha mãe Eunice. A bailarina tinha apenas 7 anos quando nosso pai foi levado para o DOPS, em Porto Alegre, e posteriormente para a OBAN, em São Paulo. As duas percorreram quarteis e presídios em busca do Bruno. Brutalmente torturado, meu pai felizmente sobreviveu e anos mais tarde pode denunciar as atrocidades cometidas pelos torturadores à Comissão da Verdade. Um deles, era o coronel Brilhante Ustra, idolatrado pelo atual presidente da República e os seus apoiadores.

A BAILARINA

por Alexandre Costa


As lágrimas escorriam dos olhos e desciam pelo rosto aflito da menina de traços suaves e pele rosada. Olhava fixamente para suas sapatilhas de balé e enxugava a boca, tentando esquecer o gosto salgado que invadia seu hálito infantil, agora amargo de tanta saudade.


A menina tinha sete anos quando levaram o pai.


O sorriso se tornou raro e o céu e as estrelas já não tinham mais graça e nem vida, pois o que lhes dava brilho eram as fantasias inventadas pelo pai.


Cavalos e elefantes voadores que invadiam o mundo dos homens para trazer paz e justiça. Borboletas gigantes pintadas com as cores vivas da felicidade e que despejavam pequenas gotas de bondade sobre a terra, para que não existisse no mundo uma criança faminta ou analfabeta. Exércitos de formigas pacíficas e sedentas por livros, que multiplicavam o conhecimento entre os povos. Gafanhotos de cores múltiplas e cintilantes que sobrevoavam o planeta lendo histórias para que todas as crianças pudessem sonhar com um mundo feliz.


Eram muitas histórias.


Às vezes, a menina tinha a impressão de ouvir o som do seu pai pela casa, rompendo o silêncio da sala, espalhando o cheiro da sua alegria em forma de sorriso.


Mas depois que os homens de coturno o levaram, restava apenas o silêncio absoluto e aquela dor que a cada dia engolia um pedacinho da sua vida. As cores vivas da infância agora eram cinza feito chumbo.


Apesar dos seus sete anos, a menina tinha uma capacidade ilimitada de transformar as situações adversas. Usava artifícios e dissimulações ingênuas e delicadas como ela. Um dos seus disfarces prediletos para esquecer a tristeza e a falta do pai era abrir o porta-jóias e dançar balé. Ela ficava mirando o infinito, ao som das melodias metálicas que escapavam da minúscula caixa, na qual uma pequena bailarina de porcelana girava seu corpinho no sentido horário, formando anéis intermináveis em ângulos de 360 graus.


Por vezes, se vestia como uma bailarina e era como se também fosse de porcelana, com a mesma suavidade dos traços e com os mesmos movimentos circulares.


Já havia se acostumado a ensaiar em frente ao espelho do seu quarto. Forjava uma platéia, colocando um terno, com gravata e tudo, acomodado em uma cadeira e, volta e meia, conversava com as roupas, como se o pai estivesse dentro delas.

Um dia, ele voltou.


Mas a menina nunca mais sentiu vontade de dançar balé, pois tinha sempre a sensação de que os homens de coturnos voltariam.

 
 
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