por Nora Prado (*)

O dia 13 de maio é a data oficial em que se comemora o fim da escravidão no Brasil quando a princesa Isabel, finalmente, assinou a lei Áurea. Corria o ano de 1888 quando Isabel assinou o decreto que tornava livres todos os escravos do território nacional. Para nossa vergonha, o Brasil foi o último país independente do continente americano a abolir a escravidão. Até chegar neste ponto foi preciso um movimento sistemático dos negros protagonizando fugas em massa, assassinatos de proprietários de terras e dos capatazes. Estas rebeliões ameaçavam a ordem social do final do Império tornando inevitável, por um número cada vez maior de pessoas, o questionamento se a escravidão era legítima ou não.
Depois de aprovada no Senado, a Lei Áurea foi encaminhada para a assinatura da princesa Isabel, que aconteceu no meio da tarde de 13 de maio. Assim que divulgaram a notícia que a abolição tinha sido decretada, oficialmente, uma grande festa se espalhou pelo Rio de Janeiro, a capital na época. A comemoração foi tão grande que se estendeu por sete dias consecutivos. Semelhante celebração ocorreu em outras grandes cidades do Brasil, como Salvador e Recife. Juntaram-se aos escravizados, agora libertos, passeatas de associações abolicionistas, foguetório, desfile de bandas e o envolvimento de milhares de pessoas simpatizantes ao movimento que festejaram por dias seguidos.
Naturalmente a história mostra que o processo da abolição foi muito mais traumático, complexo e doloroso do que narram os livros oficiais de história brasileira. Afinal, quatro séculos de escravidão deixam marcas profundas que perduram até hoje, fruto dessa desastrada empreitada. Sem um plano consistente e amplo para amparar e acolher esse contingente gigantesco de escravos o que se viu, na prática, foi uma escravidão naturalizada onde muitos escravos, sem ter para onde ir permaneciam vivendo na senzala trabalhando por um teto e um prato de comida. Os castigos e maus tratos foram proibidos, mas sabe-se que muitos senhores levaram mais tempo para se adequarem a nova ordem estabelecida.
Embora o ex-escravo tenha se tornado igual ao branco, perante a lei, isso não lhe garantiu aceitação social, acesso a terras nem qualquer tipo de indenização do Estado por séculos de trabalhos forçados. Os negros libertos, na sua ampla maioria analfabetos, foram vítimas de muito preconceito sendo obrigados a permanecerem nas fazendas vendendo a sua mão de obra a troco da sobrevivência. Os negros que migraram para as cidades encontraram somente subempregos numa economia informal, trabalho braçal e o artesanato. Desse modo cresceu significativamente o número de ambulantes, empregadas domésticas, quitandeiras, sem qualquer tipo de assistência. Os negros que não moravam nas ruas passaram a morar em cortiços miseráveis onde muitas ex-escravas eram tratadas como prostitutas. Mais uma razão para o preconceito e discriminação incutir na mentalidade do branco e a classe dominante a ideia permanente de que o negro só servia para trabalhos duros e o serviço pesado, deixando sequelas que, infelizmente, ainda permanecem.
Muitos arriscaram fugir e criaram espaços próprios em comunidades afastadas na periferia das cidades, os quilombos. Os terrenos eram adquiridos através de doações, herança, compra ou até mesmo de abandono de antigas fazendas. Após a invasão Holandesa em 1630, muitos senhores de engenho abandonaram as suas terras, proporcionando aos escravos e ex-escravos lugares para escapar em Pernambuco. Além de abrigo, a comunidade quilombola oferecia oportunidade as pessoas retornarem à sua cultura de origem africana, suas tradições e as práticas religiosas de música e dança. Durante o período colonial além de escravos fugidos, os quilombos abrigavam, também, escravizados alforriados, brancos pobres, mestiços e indígenas. De modo geral os quilombos funcionavam como válvula de escape para a violência e opressão das senzalas. Consideradas pontos centrais de oposição ao modelo escravagista, muitas delas resistiram à inúmeros confrontos com os senhores de engenho. O contexto expansionista da produção da cana-de- açúcar na época favoreceu a formação de quilombos, num momento no qual os escravos viam uma oportunidade de alcançar alguma independência financeira. Essas novas comunidades passavam a ter relações comerciais com outras comunidades livres e assim conseguiam sobreviver fora das senzalas. O cultivo e a comercialização de alimentos e a criação de animais garantiam a sobrevivência dos quilombos. Por isso a principal preocupação dos quilombolas era resistir a perseguição e aos ataques dos senhores de engenho revoltados com a nova ordem.
Atualmente muitas comunidades remanescentes de quilombolas vivem em situação precária, onde o seu modo de vida é desrespeitado e são vítimas de assassinatos, destruição de suas casas e a desapropriação de suas terras.
Graças a constituição de 1988, as comunidades quilombolas tem a sua proteção cultural garantida bem como vida digna e liberdade para viverem de acordo com as suas tradições culturais, além da preservação das suas terras. Mas na prática, essa população está sendo negligenciada pelo poder público. Cerca de 3.045 comunidades quilombolas já foram certificadas pela Fundação Palmares do Ministério da Cultura. Esse reconhecimento é fundamental para que o povo remanescente obtenha benefícios do governo e mantenham preservadas a sua existência pelo direito de moradia em territórios quilombolas, com direito à educação, saúde, lazer e a transmissão da sua cultura e a sua história.
O racismo estrutural brasileiro é a herança mais perversa deste triste período brasileiro, por outro lado, a luta para admitir a sua existência e o processo de desconstrução dessa chaga é o trabalho que vem sendo desenvolvido na esteira dos movimentos sociais por negras e negros comprometidos com a pauta dos direitos civis e pelos movimentos antirracistas. Homens e mulheres conscientes do papel fundamental do negro na sociedade brasileira que tem provado que a educação é a base para diminuir a desigualdade social e ampliar a possibilidade de mobilidade social e dignidade para os afrodescendentes brasileiros.
Seguindo o legado de Dandara dos Palmares, José do Patrocínio, André Rebouças, Antonieta Barros e Ruth Souza, nossos atuais ativistas Lélia Gonzales, Sueli Carneiro, Djamila Ribeiro, Abdias Nascimento, Emicida, Lázaro Ramos, Zezé Motta, Taís Araújo, Elza Soares, Alzira Rufino, Cida Bento, Vera Roberto, Jurema Werneck e Eliane Cavalleiro, dentre muitos outros, seguem apontando caminhos e iluminando o cenário da luta negra no Brasil. Graças ao trabalho incansável destas mulheres e homens podemos almejar um futuro com igualdade racial e de gênero num pais menos desigual e onde o preto tenha o mesmo valor do branco. Que Oxum e Iemanjá nos fortaleçam para tornarmos realidade esta utopia.
Porto Alegre, 12 de maio de 2021.
(*) Nora Prado é atriz, poeta, professora de interpretação para Teatro e Cinema, atuou na Escola das Artes do Palco - SP.