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Giovana Fleck - www.sul21.com.br

‘Falta vontade política’: Lei que promove moradia social completa 10 anos em meio a déficit habitaci


No dia 25 de dezembro de 2008, Clóvis Ilgenfritz recebeu uma ligação de Brasília. “Avisa para os arquitetos que o presente de natal desse ano está garantido”, disse o então presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) do outro lado da linha. Estava aprovada e sancionada a lei de Assistência Técnica em Habitação de Interesse Social, a ATHIS, pela qual Clóvis lutava há quase 40 anos.

A Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) mais recente aponta que, entre 2013 e 2015, houve redução de quase 400 mil unidades na produção de novos domicílios, após mais de cinco anos de avanço. Segundo pesquisa realizada pela Câmara Brasileira da Indústria da Construção, o Brasil conta com déficit habitacional de 6.186.593 de moradias, das quais 83,9% têm renda abaixo de três salários mínimos.

A assistência técnica surgiu, justamente, para combater essa situação. O texto prevê que famílias com renda de até três salários mínimos tenham acesso a projetos que garantam a segurança e a legalidade da construção. A assistência é prestada diretamente para as famílias ou as cooperativas e associações de moradores, que devem ser selecionadas com o auxílio do município, por intermédio de conselhos municipais. Com trabalho remunerado pelo poder público, os arquitetos ou engenheiros elaboram os projetos e acompanham o desenvolvimento das obras junto com os moradores beneficiados, em um processo de integração.

A lei, no entanto, vai em uma direção diferente do principal projeto de moradia social dos últimos anos – o Minha Casa, Minha Vida. No MCMV, o profissional de arquitetura ou engenharia não interage com as famílias. Além disso, o programa não possibilita – de forma direta – reformas ou a permanência de uma comunidade onde já está localizada, mas, sim, um encaminhamento dessas pessoas para outra área disponível na cidade.

Mesmo com o apoio de Lula em 2008, a ATHIS ainda se encontra às margens das políticas públicas para habitação no Brasil. Por quê? “A arquitetura, para vingar, tem que ter um mecenas. É assim aqui”, resume Clóvis.

História

A Lei Complementar nº 428, que institui um programa de assistência técnica a projetos de construção em moradia econômica em Porto Alegre.

Imagem: Arquivo/CMPA

Clóvis foi o primeiro presidente do Sindicato dos Arquitetos no Estado do Rio Grande do Sul (SAERGS), presidente da Federação Nacional dos Arquitetos e Urbanistas (FNA), vereador de Porto Alegre por três mandatos e secretário municipal de Planejamento, deputado federal, conselheiro e vice-presidente do Conselho de Arquitetura e Urbanismo do Rio Grande do Sul (CAU/RS).

Em todos os cargos, afirma sempre ter discutido a questão da habitação popular e o papel do arquiteto na construção da cidade. “Sempre tivemos grande apoio. Mas, no Brasil, quem comanda o processo não são os arquitetos ou os engenheiros, são os setores da área imobiliária. Nesse sentido, o Brasil está um século atrasado.”

No início da década de 1970, Clóvis e outros arquitetos do Conselho Regional de Engenharia e Agronomia (CREA) elaboraram uma proposta de projeto que garantia subsídios para assistência técnica em construções para famílias de baixa renda. Na época, o Banco Nacional de Habitação (BNH) tinha regras muito severas quanto ao tamanho dos centros de habitação popular, além de haver uma grande distância entre as pessoas que precisavam de melhores condições de moradia e quem pudesse prestar esse serviço. O projeto iniciado durante a Ditadura Militar, no entanto, só viria a ser concretizado quase 40 anos mais tarde.

Na década de 1990, os primeiros avanços concretos começaram a surgir. Vereador em Porto Alegre pelo Partidos dos Trabalhadores (PT), Clóvis aprovou por unanimidade na Câmara Municipal a Lei Complementar nº 428, que institui um programa de assistência técnica a projetos de construção em moradia econômica. “Mas, infelizmente, não foi aplicada”, lamenta.

No início dos anos 2000, Clóvis se elegeu deputado federal. Em 2002, propôs o texto inicial da ATHIS, que começou a ser discutido na Câmara. Por motivos pessoais, não concorreu à reeleição. Porém, o também arquiteto Zezéu Ribeiro (PT-BA) assumiu e acabou levando a proposta adiante – culminando na sanção em 2008.

Assim, foi criado o Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social (FNHIS), para subsidiar os programas vinculados à ATHIS. “Mas, no governo Dilma, a Secretaria Nacional de Habitação não deu a atenção que precisava”, afirma Clóvis. “As pessoas têm que se desvincular da visão mercantil. O programa [Minha Casa, Minha Vida] gerou empregos – e tinha que gerar empregos. Mas essa ideia de que a qualidade a gente vê depois não dá certo.”

Clóvis aponta que o MCMV é interessante do ponto de vista social e econômico, mas com falhas. “Sem a participação dos arquitetos e engenheiros, construíram umas gaiolinhas.” Ele critica o corporativismo envolvido na execução das obras, afirmando que há arquitetos suficientes disponíveis para trabalhar para resolver os problemas do déficit habitacional. “Mas deve haver subsídio para moradia, assim como para a saúde e a educação”, defende o arquiteto.

Prática

Assentamento 20 de novembro, na rua Barros Cassal. Foto: Guilherme Santos/Sul21

“Nem nos nossos governos houve sensibilidade para ver o problema da habitação como deve ser visto.” Hoje, Clóvis se dedica a um projeto que busca na conscientização das prefeituras mobilização para que as famílias de baixa renda consigam acessar recursos da ATHIS. “Temos feito um trabalho para tentar convencer os prefeitos para que eles pressionem as instâncias superiores.”

Na luta pela aplicação da lei, o CAU disponibiliza, anualmente, 2% de seu rendimento para projetos de assistência em interesse social. O recurso não é federal, mas mostra como poderia mudar vidas se fosse aplicado em maior escala. “Estamos fazendo editais de forma transparente, com recursos pequenos mas importantes”, simplifica Clóvis.

O CAU/RS obteve, até o momento, dois projetos classificados. Por intermédio do IAB RS, será feita a recuperação de uma comunidade em São Leopoldo, e, através do SAERGS, estão sendo implementadas ações que visam a sustentabilidade da reforma do Assentamento 20 de Novembro, em Porto Alegre. “O CAU entra com o dinheiro e as entidades fazem a ponte com os interessados, já que o CAU não pode, por ser uma autarquia pública”, explica Clóvis.

Representante do escritório AH! Arquitetura Humana, a arquiteta Taiane Beduschi é uma das responsáveis técnicas que conduz a reforma no 20 de Novembro. “Quando a gente fala de moradia habitacional digna, não se fala do teto e das quatro paredes, se fala da sustentabilidade econômica, ambiental e da possibilidade de permanência”, define.

O Assentamento está sendo reformado com recurso do Minha Casa, Minha Vida Entidades, mas ele não supria a demanda dos moradores de criar um lugar para morar em harmonia com o meio ambiente. Assim, o recurso provido pelo CAU permitirá que o projeto se concretize como um todo. Taiane diz nunca ter trabalhado com a ATHIS, mesmo o escritório tendo como foco principal a moradia social. “E é só sair na rua pra ver que é a principal demanda da população.”

A arquiteta sente uma distância grande entre as pessoas que precisam de melhores condições de habitação e os especialistas que podem fazer essas mudanças. Ela defende a importância da ATHIS nesse contexto, mas reconhece que, enquanto não houver uma política pública que a torne acessível, a situação da moradia permanecerá a mesma. “Para que ela aconteça, os municípios têm que estar estruturados. As ações de assessoria técnica geralmente não estão com o poder do Estado.”

Sem nem o “menos ruim”

Tanto Clóvis quanto Taiane afirmam ver nas cidades a imagem clara do processo de urbanização descontrolado pelo qual o Brasil passou nas últimas décadas, que levou mais de 80% da população brasileira a viver nas cidades (segundo pesquisa da Embrapa). A ocupação desregulada da área urbana fez com que os municípios crescessem desordenadamente e milhares de pessoas morassem em terrenos irregulares. A ATHIS busca combater esse problema de duas formas: urbanização e regularização de terrenos.

De acordo com a lei, moradores de terrenos sem matrícula podem contar gratuitamente com o serviço de profissionais que organizem a regularização da área. Assim como para as casas, não há um limite de tamanho de terreno para a família ser atendida.

A arquiteta coloca que a possibilidade de atender demandas pontuais é algo latente no contexto da moradia hoje, e está previso na lei. “As vezes tem o seu João, a demanda é melhorar a casinha dele. Mas como ele acessa isso? Se [a lei] estivesse presente no município, ele poderia acessar diretamente na Secretaria de Habitação. Tem demanda, tem pessoas para obedecer a demanda, tem lei que reconhece, mas como implantar como política pública?”, questiona.

Taiane também destaca a importância de entender que as necessidades estruturais da cidade são atribuições do arquiteto. “Está no nosso código de ética. Temos que promover a justiça e a inclusão na cidade. Os profissionais têm que começar a se posicionar mais em relação a isso – temos o estatuto da cidade e uma lei – então a gente tem o aporte jurídico e legislativo. A gente tem que começar a juntar essas coisas para provocar uma mudança efetiva.”

Para Clóvis, durante a gestão Temer o que “havia de bom, ou menos ruim”, em suas palavras, foi desmontado. “O FNHIS não existe mais, estão apostando em políticas demagógicas, por exemplo, o cheque-reforma. É um recurso de pequena monta só para dizer que fazem algo pelas famílias mais pobres. E é precário.” Segundo o Siga Brasil, portal de transparência do orçamento federal, o recurso destinado para o FNHIS em 2018 equivale a R$ 15,5 milhões. Para comparação, o valor destinado ao auxílio-moradia para autoridades dos Três Poderes da República é 54 vezes maior, correspondendo a mais de R$ 823 milhões. Em 2013, o recurso do FNHIS chegou a R$ 227 milhões.

Como exemplo, o arquiteto cita o dia 1° de maio, quando um prédio de 26 andares que abrigava 50 famílias na cidade de São Paulo desabou, em chamas. A construção era lar de uma ocupação, coordenada pelo Movimento de Luta Social por Moradia (MLSM). “O que aconteceu em São Paulo comprova o desprezo do governo, dos governos, com esse processo habitacional. Ao invés de assumirem a causa, querem colocar a culpa nos ocupantes. São covardes. Não têm compromisso com a área social.”

“Hoje eu luto”, posiciona-se. “Luto para que não sejamos o país que só procrastinou o problema da moradia, e para que os prefeitos, governadores e presidente vejam que dá certo – se tiver vontade política.”


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