PUBLICADO ORIGINALMENTE EM: http://www.sul21.com.br/jornal/a-oab-esta-onde-esteve-em-1964-no-golpe-por-ayrton-centeno/
Houve quem se surpreendesse com a decisão do Conselho Federal da OAB de apoiar o impeachment de Dilma Rousseff. Mas quem sabe como a Ordem se comportou 52 anos atrás recebeu a notícia até com certo enfaro. Zero de espanto. Em 1964, o Conselho Federal da OAB saudou a deposição de João Goulart e o fim abrupto do governo constitucionalmente eleito. Em êxtase, alegrou-se com o golpe.
Quem afirma isto não é o reles escriba mas…a OAB. Abre aspas: “Dessa forma, a Ordem recebeu com satisfação a notícia do golpe, ratificando as declarações do presidente Povina Cavalcanti, que louvaram a derrocada das forças subversivas”. É o que está registrado, com todos os verbos e adjetivos, no próprio site do Conselho Federal (http://www.oab.org.br/historiaoab/estado_excecao.htm).
Então na presidência da OAB, o alagoano Carlos Povina Cavalcanti “parabenizou a atuação do Conselho, considerando-a lúcida e patriótica ao alertar, durante a reunião realizada a 20 de março, os poderes constituídos da República para a defesa da ordem jurídica e da Constituição”.
Com a palavra Cavalcanti, estendendo-se um pouco sobre as razões da pregação golpista: “(…) antecipando-nos à derrocada das forças subversivas, acionadas por dispositivos governamentais, que visaram, em disfarces, a destruição do primado da democracia e a implantação de um regime totalitário no qual submergiram todos os princípios da liberdade humana, tivemos a lucidez e o patriotismo de alertar, na memorável reunião extraordinária de 20 de março findo, os poderes constituídos da República para a defesa da ordem jurídica e da Constituição, tão seriamente ameaçadas”.
Em outro trecho do documento reproduzido pelo site, Cavalcanti argumenta que “(…) Sem sairmos da órbita constitucional, podemos hoje, erradicar o mal das conjunturas comuno-sindicalistas e proclamar que a sobrevivência da Nação Brasileira se processou sob a égide intocável do Estado do Direito. Que a Providência Divina inspire os homens responsáveis desta terra e lhes ilumine a consciência jurídica, pois que sem o direito, como pregou Rui Barbosa, não há salvação”. É o que consta da ata da 1115ª. sessão realizada em 7 de abril de 1964.
Neste precioso parágrafo, a OAB reproduz um argumento recorrente durante o autoritarismo: o golpe foi dado para salvar a democracia. Em outras palavras, implantou-se uma ditadura porque a ordem democrática corria perigo e poderia ser substituída por um regime ditatorial. Bingo!
Em alto e bom som, sente-se o eco da novilíngua engendrada por George Orwell. No seu romance 1984, o nome das coisas significa justamente o oposto do que se afirma. Bom é mau, paz é guerra, liberdade é escravidão. Outro ingrediente da distopia orwelliana, o duplipensar, também ingressaria na dança. É a capacidade de conciliar duas crenças opostas ao mesmo tempo e de acreditar genuinamente na fabulação que produz.
Como paradoxo pouco é bobagem, Cavalcanti arremata proclamando, Ruy Barbosa a tiracolo, que “sem o direito não há salvação.” Sob a tirania, o direito atenderia pelo nome curto e grosso de AI-5. Mais Orwell.
Sete dias após o estupro da Constituição ter sido visto como relação consensual, o Conselho Federal exultava. Na sessão ordinária de 7 de abril, “a euforia transborda das páginas da ata que registrou o encontro”, registrou a historiadora Denise Rollemberg, autora de Memória, Opinião e Cultura Política. A OAB sob a ditadura (1964-1974). E prossegue: “A euforia da vitória, de estar ao lado das forças justas, vencedoras. A euforia do alívio. Alívio de salvar a nação dos inimigos, do abismo, do mal”. Em júbilo, Cavalcanti chamou os conselheiros de “cruzados valorosos do respeito à ordem jurídica e à Constituição” e se apresentava, orgulhoso, como “em paz com a nossa consciência”.
No livro Modernidades Alternativas, de 2008, a pesquisadora investigou o comportamento da OAB na primeira década da ditadura. Em entrevista ao repórter Chico Otávio, de O Globo, sustentou que aquilo que se conhece como a postura critica da Ordem ao poder militar somente aconteceu a partir de 1972. Até então, oscilou entre o apoio aos generais no poder, o mutismo e uma discreta desaprovação às prisões arbitrárias. Mais: nos primeiros meses após o AI-5, o golpe dentro do golpe, editado em 13 de dezembro de 1968, só uma voz se ergueu claramente contra a abominação, a do advogado Heráclito Sobral Pinto. Voto vencido entre os conselheiros, Sobral apoiara a derrubada de Jango e se arrependera. “No mais, o silêncio foi a resposta da Ordem ao ato que eliminou o que ainda restara de direitos civis”, declarou Denise Rollemberg ao repórter.
Foi um silêncio interessante. Quatro dias após o AI-5, o ex-presidente da OAB, Cavalcanti, foi nomeado pela tirania para compor a Comissão Geral de Investigações (CGI) que pretendia extirpar a corrupção. O levantamento de Denise Rollemberg constatou que Cavalcanti não estava sozinho. Diversos presidentes regionais da Ordem juntaram-se às subcomissões de investigações nos seus estados. A CGI seria um fracasso mas esta é outra historia.
Antes, mal o golpe assoprara a primeira vela de seu bolo, e o vice-presidente da OAB, Alberto Barreto de Melo, resolveu criticá-lo. Não pela repressão mas por repressão insuficiente. Reclamou que antigos colaboradores do governo Goulart ainda continuavam na administração pública. Era preciso alijá-los também. Garimpando as atas do CF, Denise Rollemberg recolheu a manifestação da conselheira Maria Rita Soares de Andrade que aplaudia a edição do AI- 2 “como um ato de legítima defesa ditado pelo estado de necessidade em que se viu a revolução que tem o dever de preservar seus objetivos”. Na época, o golpe atendia por “revolução” — Orwell mais uma vez. Baixado em outubro de 1965, o Ato Institucional 2 reabriu processos de cassação, extinguiu partidos políticos, determinou que funcionários públicos estáveis seriam sumariamente demitidos se suas atividades não fosse consideradas compatíveis com os objetivos do regime de força e consagrou a intervenção direta do Executivo sobre o Judiciário.
Existe outro episódio espinhoso para a história da OAB vinculado aqueles ásperos tempos. Em maio de 1964, ainda através de Cavalcanti, ela participou da comissão designada pelo ditador Castelo Branco para verificar a integridade física de nove membros de missão comercial da República Popular da China. Resultado de acordo entre os dois países, a missão estava no Brasil desde 1961. Detidos sob suspeita de conspiração, os chineses tomaram 10 anos de cadeia. Cumpriram pouco mais de um ano e com a ajuda gratuita do velho Sobral, novamente ele, conseguiram ser repatriados. Não se sabe qual foi o parecer da comissão oficial mas o fato é que os estrangeiros, como relatariam mais tarde, foram torturados.
Um deles, Ju Quingdong, funcionário da agência de notícias Xinhua, contou que teve a casa arrombada, foi espancado, ameaçado de morte e queimado com brasa de cigarros no Departamento de Ordem Política e Social (Dops). Pisoteado na barriga, sofreu uma evacuação involuntária. E os meganhas do Dops puseram a mão em todo o dinheiro que possuía e que nunca mais viu. Em 2014, aos 84 anos, ele esmiuçou os suplícios à Comissão da Verdade/RJ.
Se na alvorada do golpe, a OAB brindou aos “homens responsáveis desta terra” que baniram “o mal das conjuras comuno-sindicalistas”, mais tarde constataria o trágico resultado da sua opção. No começo da tarde de 27 de agosto de 1980, a secretária Lyda Monteiro da Silva, de 59 anos, abria a correspondência do presidente do Conselho Federal da Ordem, Eduardo Seabra Fagundes, quando uma carta-bomba explodiu, matando-a.
Entre uma e outra data, a OAB mudara. Apesar de sua postura, no mínimo, ambígua durante os oito primeiro anos da gestão ditatorial, o Conselho Federal, assegura que, logo nos primeiros meses, começou a vislumbrar “a verdadeira face do novo regime”. Em 1977, presidida por Raymundo Faoro, a Ordem empenhou-se pela revogação da Lei de Segurança Nacional e do AI-5, a defesa dos presos políticos, o fim da tortura. Também pelo retorno das garantias plenas da magistratura e do habeas corpus, além da convocação de uma assembléia nacional constituinte. Transformou-se, então, em alvo de terroristas de ultradireita, contrários à abertura política. Nem parecia que aquilo tudo, que ajudara a partejar com sua adesão entusiasmada, nascera “sob a égide intocável do Estado do Direito”.
(*) Ayrton Centeno é jornalista