Ainda nos anos 90 do século XX meu saudoso amigo Ivan Ferreira me disse: Minha geração tem uma dívida histórica com a tua. Não fez a revolução. Se eu pudesse encontrar o Ivan agora, eu diria: Não há dívida nenhuma meu amigo. Nem a tua geração, nem a minha, nem a que esta por vir faria a revolução.
Ivan Ferreira era um militante histórico do Trabalhismo. Daqueles que tiveram o privilégio de conviver com Leonel Brizola. Que acompanhou, não sem contrariedades, a passagem do PTB para o PDT. E assistiu a ascensão do PT, engolindo as bases mais identificadas com o socialismo que constituiam o eleitorado dos trabalhistas. Com Ivan fui aprendendo os rudimentos da política, antes de ser, eu também, atraído para o Partido dos Trabalhadores, lá por 1983. Sempre o considerei um mentor e, mesmo quando não quis militar pelo PDT, via nele um companheiro de sonhos, de idéias de futuro, de lutas. E, claro, nosso momento mais dolorido enquanto amigos e militantes, foi a passagem de Lula para o segundo turno, em 1989, deixando Brizola fora da briga com Collor pela presidência na primeira eleição direta desde 1961.
Tanto eu quanto Ivan sofríamos do mesmo problema. Eu luto para libertar-me. Mas quanto à Ivan, quis o destino que eu não tenha como saber sua opinião. Não ao menos nesta vida. O problema a que me refiro é a crença na Democracia Representativa como via para promover o enfrentamento com os capitalistas e superar as tremendas desigualdades das quais estes últimos se nutrem.
Levei anos tentando me convencer de que este caminho era possível. Levei anos apostando em um partido político, acreditando que este, uma vez conquistando via voto as instâncias decisórias do legislativo e do executivo, iria por em marcha um movimento de transformação na forma como os políticos lidavam com a sociedade. Sobretudo com aquelas parcelas de sociedade que historicamente sempre eram relegadas ao simples papel de gado, como bem traduziu Zé Ramalho. A julgar pelas primeiras experiências com o poder, considerando apenas o Rio Grande do Sul, tivemos momentos inesquecíveis, como o Orçamento Participativo em Porto Alegre e a queda de braço de Olívio Dutra com a norteamericana Ford.
Ventos que precedem a calmaria. Passados mais de 30 anos desde que comecei a votar e militar no PT muita coisa mudou. Aqui e no resto do mundo. E fui tentando entender porque a cada eleição eu ia perdendo o elan, a vontade e a paixão pela militância política. E busco aqui traçar algumas das razões pelas quais o pessimismo é meu único companheiro quando o assunto é política. Ao menos política no sentido tradicional do termo, vinculada aos partidos e as eleições. Entendo aqui que minha única reflexão possível se dá sobre a sociedade ocidental, posto que, foi nela que me tocou nascer e viver.
E para chegar a tanto é preciso reconhecer que nosso problema é, como diria Raul Seixas, raso, largo e profundo. Raso, porque se sustenta em idéias e opiniões rasas, que gostam mais das luzes da superfície do que as trevas do fundo oceânico. Largo, porque atinge, de maneiras distintas, à toda a sociedade. Profundo, porque tem raízes em um longo processo histórico.
Nesta parte do mundo há duas matrizes fundamentais. A greco-romana, da qual herdamos as tradições políticas e jurídicas, e a judaico-cristá, da qual herdamos as tradições religiosas e morais. E ambas moldaram o ocidente nos últimos dois mil e quinhentos anos. Fazendo um salto histórico, importa para o que quero dizer, reconhecer que o sistema capitalista vem se se desenvolvendo há quase cinco seculos, desde os primeiros artesãos comerciantes da Europa até as associações transnacionais da atualidade.
E a história deste desenvolvimento gerou dois campos antagônicos, irreconciliáveis sob qualquer perspectiva. De um lado, o Liberalismo, onde a crença na liberdade do indivíduo é a única garantia para que se possa progredir inexoravelmente rumo à um fururo onde a teconologia suprirá todas as carências humanas. E mesmo quando todas estiverem supridas, sempre se poderá criar novas, para que a tecnologia siga se desenvolvendo.
De outro lado, o Comunismo, onde a crença reside na possível capacidade do ser humano de viver em regime comunitário de bens, sacrificando sua "natural" capacidade criativa em prol dos demais. Neste sistema, as carências humanas a serem atendidas deveriam ser aquelas restritas aos elementos basicos para uma vida digna, como alimentação, moradia, vestimentas e saúde.
Tanto em um quanto no outro campo de crenças, há que se considerar a necessidade de gerar recursos, Seja através da "livre iniciativa", devidamente remunerada pelos demais. Seja através da coletivização dos meios que permitem produzir o necessário. E entre um extremo e outro estão os ocidentais, mais tarde acompanhados por paises orientais, em uma guerra sem fim. E entre um extremo e outro há um gradiente de posições, no qual se encontram os socialistas e os sociais-democratas, expressão das tentivas de realizar a redução das desigualdades sociais sem o recurso a revolução.
E neste meio termo estão as esquerdas institucionais, com seus partidos políticos, disputando as instâncias decisórias via eleições. E é aqui que reside a trampa na qual estão aprisionadas as esquerdas institucionais. Para realizar o projeto de transformação pacífica e gradual das desigualdades geradas pelo sistema capitalista, as esquerdas insitucionais organizam-se em partidos políticos e priorizam a "representação" política e o poder "delegado".
A idéia é a de que, alcançando uma maioria nas instâncias legislativas e conquistando os principais cargos do executivo, se poderia, via reformas na legislação e na gestão social dos recursos do Estado, tirar dos detentores privados da riqueza os recursos necessários para atender as necessidades básicas e a dignidade dos setores historicamete desfavorecidos. É preciso ser um gênio na arte do convencimento para lograr com que a maioria dos eleitores pudessem distinguir, pelo discurso, as esquerdas institucionais dos demais concorrentes liberais que, em geral, prometem quase a mesma coisa. E, como de costume, a maioria absoluta não é alcançada e tampouco a plenitude dos cargos executivos em disputa.
Resta então às esquerdas institucionais fazer alianças e composições, pré e pós eleitorais, para conseguir, aos trancos e barrancos, imbutir na legislação e nas ações do poder executivo algumas garantias para aqueles que não detém os meios de produzir e vender os bens e serviços que a sociedade, em tese, necessita. Na trajetória das esquerdas insitucionais brasileiras, as alianças e composições se davam, inicialmente, dentro de um difuso campo "democrático e popular". Com o passar dos anos, se foram os escrúpulos de compromissos inegociáveis e o leque de alianças alcançou o outro extremo, incluindo Liberais e todos seus subprodutos político-partidários.
Esta elasticidade política, intelectualmente chamada de "pragmatismo", levou a esquerda institucional à um beco sem saída. No afã de vencer eleições e compor maiorias as esquerdas insitucionais apostaram todas suas estratégias de lutas no fortalecimento das legendas. Cristalizaram "lideranças" que se repetem de forma cansativa em candidaturas e mandatos, pois são "fazedores de votos".
Adotaram e aperfeiçoaram práticas de multiplicação de recursos para campanhas cada vez mais caras e vazias de conteúdo, centradas no personalismo e nos ataques e defesas com os adversários de hoje, que podem ser os aliados de amanhã. Enredaram-se em estruturas partidárias vinculadas à necessidade de sempre ter mandatos no legislativo e no executivo. Enfim, acomodaram-se em um jogo impossivel de ser vencido. Acreditando que existe a mínima possibiidade de convívio entre Democracia e Capitalismo, esqueceram de discutir que a Democracia não possui um único modelo possível, qual seja, este que impera nos paises capitalistas ocidentais e que se baseia no sistema representativo, incapaz, por si só, de permitir a autonomia dos sujeitos frente aos aparelhos político-partidarios tradicionais. Esqueceram que talvez seja possível avançar para um modelo de democracia participativa, fora do âmbito partidário-eleitoral, onde se criem outras bases de tomadas de decisões.
E de onde se possa de fato questionar e superar este sistema desigual, desumano, desgraçado e desgraçante que é o sistema capitalista. Mas, por hora, não se vê um mínimo movimento neste sentido. Pelo contrário. O que se vê é a defesa das "instituições democráticas", como instituições sagradas e eternas, acima de qualquer questionamento de sua validade e relevância frente as enormes desigualdades que, em que pesem alguns avanços alcançados pelas esquerdas instucionais, mudam a moldura, mas não alteram o desenho.
Acredito que este seja o enredo mais amplo no qual se insere a nossa atual conjuntura. Para aqueles que sonham com uma sociedade igualitária, onde todas as pessoas tenham exatamente os mesmos direitos e deveres, apresentou-se nos últimos 12 anos um leque expressivo de avanços. Afirmação de coletivos antes marginalizados, como o caso das comunidades LGBTs; afirmação, ainda que insuficiente, de direitos das mulheres; inclusão de milhões de pessoas na sociedade formal de consumo e, mais importante, no Ensino Superior. Este último cenário assisti de perto, dada minha condição de professor universitário.
Poderia ainda fazer referência a um grande número de políticas públicas, como Minha Casa, Minha Vida, Luz para todos, REUNI, PROUNI, criação de Institutos Federais, além de uma política internacional arrojada, baseada em uma espécie de retorno à lógica dos "paises não alinhados" e na construção dos BRICS. Mas acho que todos já conhecem bem as transformações que o país viveu nestes 12 anos. Porém, tambem é inegável que houve um custo. Muito alto. Um custo que se expressa nos equívocos cometidos para implementar tamanho volume de políticas. E um custo muito mais alto, que foi se tornando cada vaz mais claro.
O custo dos pactos celebrados para vencer, governar e aprovar as políticas propostas. E, agora, revela-se um outro custo. O da ruptura com princípios que deveriam ser inalienáveis sob qualquer circunstância. Não posso me permitir ser ingenuo a ponto de achar que o Partido dos Trabalhadores não utilizou dos mesmos mecanismos dos partidos tradicionais do liberalismo para arrecadar fundos para manter sua maquina funcionando e se expandindo. Propinas, superfaturamentos, vista grossa para achaques ao erário público por seus membros e "aliados". No caudal desta tempestade, mais um grave problema que estes anos nos legaram.
O peso da figura de Luiz Inácio Lula da Silva. As origens paupérrimas e a trajetória de vida deste retirante/operário/sindicalista o colocaram na condição de maior liderança da esquerda brasileira. E, conduzido pela marcha da história enquanto achava que a conduzia, Lula chegou a Presidência da República. Empolgados por seu carisma e capacidade de aglutinação, muitos de nós esquecemos que Lula é um ser humano como outro qualquer. E também erra. Seu maior erro talvez tenha sido crer que, apenas pelo fato de que venceu duas eleições presidenciais, teve a mais alta aprovação da história de um presidente, e fez de Dilma Roussef sua sucessora, seria tratado com igualdade pelos reais detentores do poder. Está descobrindo agora que, encerrado o ciclo que ele iniciou, já é hora de dar um basta nos avanços sociais conquistados.
Lula se descobriu descartável. Está sendo triturado por aquelas forças que deveria ter combatido quando alcançou o poder político. Como não o fez e, ao contrário, aceitou o apoio e a falsa bajulação destes setores, terá agora que, junto conosco, aceitar que se deixou convencer de algo impossível. Lula acreditou que tudo o que impulsionou como presidente seria suficiente para que lhe concedessem o privilégio de algumas regalias. Poucas. Pífias perto da forma nababesca na qual vivem as elites deste pais. Queria um sítio para relaxar. Um apartamento classe média remediada e os presentes que ganhou no exercício da presidência. Mas nossa cultura patrimonialista e oligárquica não pode permitir isto. Aécio, Alckmin, Serra, FHC, Maluf, Collor e Sarney podem ter acesso aos melhores bens de consumo e desfrutar das melhores acomodações e propriedades. Lula não.
Não sabemos bem o porquê deste consenso. Mas ele existe. E é baseado nele que avança a campanha de desqualificação de Lula. E suas tentativas de explicar os "escândalos" que lhe jogam encima não tem sido das mais eficazes. Contudo, Lula ainda tem carisma. Ainda está vivo e ativo. Ainda mobiliza as "massas". Mas não é apenas o carisma de Lula que garante o apoio que ele recebe, sobretudo após a desastrosa ação da Operação Lava Jato em sua "condução coercitiva". É também porque, em que pese os enormes erros cometidos pelo PT, uma fatia expressiva da sociedade sabe o que pode perder se, no vácuo de uma eventual queda do PT, com a cassação do mandato de Dilma ou o impedimento de uma candidatura de Lula em 2018, tenhamos o retorno de um governo liderado pelo PSDB.
Todo este embróglio será lembrado no futuro como um episódio a mais na longa história de dominação capitalista. Um episódio que servirá como mais um exemplo dos absolutos limites que existem para qualquer tentativa de superação das desigualdades enquanto este sistema estiver em vigência. E isto é uma constatação histórica. Maior que o PT, maior que Lula, maior que Dilma, maior que eu, maior que você.
Encerro com um trecho de um ensaio de Max Weber, escrito em 1906, logo após o fracasso da primeira onda revolucionária na Rússia e que foi, apropriadamente, resgatado pelo sociólogo Michael Löwy em um artigo recente no site da Boi Tempo. "É profundamente ridículo acreditar que existe uma afinidade eletiva entre o grande capitalismo, da maneira como atualmente é importado para a Rússia, e bem estabelecido nos Estados Unidos […], e a ‘democracia’ ou ‘liberdade’ (em todos os significados possíveis da palavra); a questão verdadeira deveria ser: como essas coisas podem ser mesmo ‘possíveis’, a longo prazo, sob a dominação capitalista?”
Max Weber, «Zur Lage der bürgerlichen Demokratie in Russland»,Archiv für Sozialwissenschaft und Sozialpolitik, Band 22, 1906, Beiheft, p. 353. Citado por Michael Löwy em artigo publicado no site http://blogdaboitempo.com.br/2015/08/20/michael-lowy-capitalismo-e-democracia-na-europa/.
Artur Barcelos é Historiador