Neste último final de semana ocorreu a prova do Enem para estudantes do ensino médio e interessados em ingressar em faculdades e universidades brasileiras. Além das pessoas que foram barradas por perder a hora e viraram pautas sensacionalistas, as redes sociais foram tomadas por uma onda de conservadorismo após a execução do exame.
A avaliação incluiu uma pergunta sobre o livro “O Segundo Sexo”, da filósofa francesa Simone de Beauvoir, utilizando um dos trechos mais famosos da obra que é uma das referências no estudo do feminismo.
O exame não utilizou apenas Simone como referência e também apresentou questões abordando o pensamento do educador de esquerda, Paulo Freire, o filósofo marxista Slavoj Žižek, entre outras perguntas com viés mais progressista.
A inclusão dos autores foi suficiente para provocar uma convulsão dos reacionários na internet.
No segundo dia de avaliação, veio o tema da redação: “A persistência da violência contra a mulher na sociedade brasileira”. E a internet veio abaixo, com as feministas defendendo a ousadia da prova em finalmente avaliar questões de desigualdade de gênero.
O primeiro site reacionário a vomitar besteiras foi o Spotniks. Seguindo a linha deles na imitação do liberalismo norte-americano de uma maneira mambembe, publicaram um texto em primeira pessoa de um estudante que está se transferindo de faculdade e precisava fazer o exame. “Quem lê a prova sai com a impressão de que a crise de 2008 segue um assunto mais relevante para a maioria dos estudantes do que a realidade atual do país”, diz o autor Felippe Hermes, que ignora a situação delicada da Europa e acha que tudo na esquerda se refere a Karl Marx.
Para quem não lembra, o mesmo Spotniks que resolveu criticar a presença de Simone Beauvoir no começo do Enem é aquele site que defendeu que as mulheres usem armas de fogo para se defender de violência sexual. Seus autores estão mais preocupados em defender uma pauta pró-armas do que realmente em diminuir a desigualdade de gêneros.
Os autores do site também desconhecem a própria esquerda que descrevem. Nem Simone ou seu marido Jean-Paul Sartre são herdeiros do marxismo. Na faculdade, ela estudou o racionalista alemão Gottfried Wilhelm Leibniz, herdeiro de Descartes, e também pesquisou o idealismo francês. Simone de Beauvoir só se tornou de esquerda na militância política, porque fez parte da resistência francesa contra o nazismo, que era composta por socialistas.
Pensadores mais influenciados diretamente por Karl Marx vieram da tradição da crítica econômica e da dialética, temas que são caros para Sartre e Simone, mas jamais foram foco de seus estudos.
É sim verdade que Simone de Beauvoir e Jean-Paul Sartre apoiaram Che Guevara, Fidel Castro, Mao Tse-Tung e até a União Soviética, porque eles eram um casal de filósofos existencialistas alinhados com a esquerda da Segunda Guerra Mundial. Na época, esse pensamento era engajado e buscava se firmar por governos autoritários.
No entanto, essa mesma Simone foi a que combateu o governo francês corrupto de Vichy, que se rendeu a Hitler, e apoiou Sartre na luta pela independência da Argélia, entre outros diversos países. A crítica dos reacionários ao Enem chega a ser infantil de tão pobre, por desconhecimento puro de história mundial.
No entanto, a ignorância é um celeiro de oportunistas. Os religiosos e ultraconservadores políticos Marco Feliciano e Jair Bolsonaro já declararam que o Enem é “doutrinação ideológica do governo Dilma Rousseff”. Gritando que pensadores de esquerda apoiaram regimes autoritários, a nossa direita reacionária apela para a ignorância dos estudantes e quer mesmo que a escola funcione como uma censura ao gênero feminino e às minorias dos negros, da comunidade LGBT e de outros segmentos.
A presidente da República se manifestou favorável às novas questões do Enem no fim do domingo (25). “A sociedade brasileira precisa combater a violência contra mulher”, disse Dilma através de sua assessoria de comunicação.
Enquanto isso, nossos reacionários permanecem mergulhados numa grave ignorância intelectual, fruto de um antipetismo midiático e da falta de visão social. A gritaria contra o feminismo e contra o marxismo revela o machismo e a falta de leitura deles.
Como disse uma amiga minha, no Facebook: “O lema ‘machistas não passarão’ está sendo literalmente aplicado agora. Quero ver eles escreverem na prova que feminismo é ‘falta de rola’ e que mulher deve ser estuprada. Merecem ser ridicularizados”.