Durante as jornadas deste ano de descomemoração do golpe de Estado de 1973 no Chile, o Comitê Carlos de Ré Verdade e Justiça do Rio Grande do Sul (CCR) entregou às coordenações do sítio Estádio Nacional Memoria Nacional e ao Museo de la Memoria y los Derechos Humanos fotografias, documentos e a lista de 123 presos brasileiros e dos seis mortos no país naquele período.
A lista entregue pelo Comitê Carlos de Ré aos sítios de memória ainda não é a relação completa dos brasileiros torturados ou mortos no Chile, mas foi significativamente atualizada pelos pesquisadores do CCR. A lista continua sendo ampliada pelas informações de ex-exilados que têm acrescentando nomes de companheiros que não constavam de nenhuma relação de presos.
Nos documentos oficiais produzidos pelos militares há grande margem de erro, motivada por má informação de nomes, mistura de duplicação de nomes e codinomes, erros de grafia, nomes falsos, inversão de sobrenomes e até mesmo omissões para encobrir execuções e “desaparecimentos”. O trabalho do CCR tem sido fazer essas correções e completar as informações, com a contribuição dos que lá estiveram ou seus familiares.
Passados 42 anos, continua impreciso o número de vítimas do terrorismo de Estado exercido pela ditadura de Augusto Pinochet (1973-1990) já a partir das primeiras horas de 11 de setembro. Duas comissões – a Comissão Nacional da Verdade e Conciliação, “Comissão Rettig”, e a Comissão da Verdade sobre Prisão Política e Tortura, “Comissão Valech” - ouviram milhares de depoimentos de vítimas e obtiveram provas cabais de 3.216 assassinatos políticos e outros 38.254 registros de sobreviventes à prisão e torturas naquele período, que foram oficialmente reconhecidos pelo Estado chileno.
As listas de detidos
A origem do trabalho realizado pelo Comitê Carlos de Ré é a relação geral de presos, mandada produzir pelo comandante do campo de concentração do Estádio Nacional, o coronel Pedro Espinoza[1], braço direito do futuro criador e chefe da sanguinária Dina, coronel Manuel Contreras. As listas de estrangeiros foram enviadas aos países apoiadores do golpe, como o Brasil, com a solicitação de que retirassem “os seus” do Chile.
Já nas primeiras horas do golpe os aeroportos e fronteiras foram fechados, enquanto as Forças Armadas e os Carabineiros faziam milhares de prisões em invasões a sedes partidárias, sindicatos, fábricas, universidades e buscas pontuais a residências e locais de trabalho de figuras proeminentes do governo da Unidade Popular ou das forças sociais que a apoiavam. Além disso, logo após a decretação do estado de sítio e do toque de recolher – a partir das 18 horas do próprio dia 11 -, arrastões aprisionaram quaisquer pessoas encontradas na rua. Quem não foi reconhecido como “perigoso” e executado no ato, foi levado para triagem principalmente, mas não só, nas delegacias policiais de bairro, no Ginásio Chile e no Estádio Nacional. Ali, muitos foram mortos sob tortura ou executados e seus corpos, “desaparecidos”; outros foram levados para locais clandestinos para interrogatórios (sempre sob tortura), de onde também “desapareceram”.
Essa triagem buscava, genericamente, identificar e separar integrantes do governo de Salvador Allende, líderes e militantes dos partidos de esquerda (principalmente os do Movimento de Esquerda Revolucionária, o MIR, o único que chamou e ofereceu resistência ativa desde os primeiros momentos do golpe), sindicalistas e operários armados, estudantes organizados politicamente. Para isso, em cada local de concentração, os militares elaboraram listas dos seus presos. A maioria delas redigidas, por ordem dos carcereiros, por detidos, como relata Boris Navia, também preso no Ginásio Chile, testemunha ocular do assassinato de Víctor Jara:
“Y cuando nos ordenan confeccionar listas de los presos para el traslado al Estadio Nacional, también disfrazamos su nombre y le inscribimos con su nombre completo: Víctor Lidio Jara Martínez. Pensábamos, con angustia, que si llegábamos con Víctor al Nacional, y escapábamos de la bestialidad fascista del Chile, podríamos, tal vez, salvar su vida”.
[Leia a narrativa completa em http://migre.me/rEr4L].
O Chile estava transformado em um enorme campo de concentração. Somente no Estádio Nacional eram 20 mil presos. Os golpistas desejavam livrar-se logo da massa de prisioneiros ali concentrada, que já chamava a atenção da imprensa estrangeira e de organizações internacionais – se aproximava a data da visita da Comissão de Diretos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA) e a data do jogo entre as seleções de futebol do Chile e União Soviética, no próprio Estádio Nacional.
Retirados do estádio, os presos chilenos foram espalhados por outros centros de detenção, tortura e isolamento, ou sumariamente executados e “desparecidos”. E, ainda, precisavam desincumbir-se rapidamente dos milhares de estrangeiros que tinham em mãos.
Os brasileiros no Chile de 1973
A listagem dos brasileiros presos no Estádio Nacional – entre eles os gaúchos Dirceu Messias, Roberto Metzger e Jaime Cardoso - foi entregue ao Consulado do Brasil em Santiago. Por ordem do coronel Pedro Espinoza, um dos prisioneiros brasileiros datilografou a lista dos compatriotas e, intencionalmente, embaralhou sobrenomes e incluiu nomes frios na lista.
O embaixador Antônio Cândido de Câmara Canto mantinha “intensa relação” com os militares que conspiravam contra Allende, com quem reunia-se desde antes do golpe de Estado e informava sobre sua preparação ao governo brasileiro, chefiado pelo general Emílio Garrastazú Médici, conforme documentos recentemente revelados do Centro de Informações do Exterior (CIEX), vinculado diretamente ao Serviço Nacional de Informações (SNI).
Após a vitória de Allende, em 1970, aumentou o afluxo clandestino de integrantes da “comunidade de informações” do Brasil rumo o Chile para “monitorar o cotidiano dos brasileiros que buscaram exílio”[2], como revelam muitos dos informes do CIEX [leia www.documentosrevelados.com.br/repressao/forcas-armadas/documento-informando-sobre-banidos-no-chile]. Segundo o informe do CIEX nº 148, vol. 10, “a chegada dos brasileiros ao Chile foi relatada pelos diplomatas do Ministério das Relações Exteriores (...). O afluxo de asilados e refugiados brasileiros no Chile ter-se-ia incrementado nos últimos meses, estimando-se que, em abril de 1970, se encontrariam naquele país cerca de 300 elementos, entre asilados de jure, refugiados, ingressados como turistas ou clandestinamente”. No informe imediato ao golpe, de 19 de setembro de 1973 (nº 451, vol. 19), naquele momento foram identificados pelo serviço de informação brasileiro 821 brasileiros vivendo no Chile.
Desses, cerca de 130 foram presos pelos militares chilenos nos primeiros dias do golpe. Os demais escaparam a tempo, escorregando pelas fronteiras ou jogando-se – às vezes literalmente – para dentro de embaixadas, onde encontrariam garantias de vida e salvo condutos para fora do país.
Os asilados nas embaixadas
Já no início da tarde, menos de quatro horas após a explicitação do golpe, com o ataque de tanques ao Palácio La Moneda, as embaixadas começaram a lotar de pessoas que buscavam a proteção do asilo. A maioria delas logo seria cercada pelos militares, para impedir a fuga de procurados pelo regime. Ainda no meio da manhã, soldados chilenos trocaram tiros com defensores da embaixada de Cuba, desde então sitiada e sob periódico tiroteio.
Em 8 de outubro de 1973 estava circulando, como alerta, no Ministério do Exército e nas agências do SNI e do DOPS no Brasil a lista dos brasileiros que haviam encontrado “proteção precária” na embaixada da Argentina, em Santiago [http://migre.me/rEtCh]. Entre os que tentavam sair do Chile através da diplomacia argentina estavam os gaúchos João Paulo, Flávia e Sandra Macedo e Castro, Geraldo Lopes Burmeister, José Roberto Licks, Maria America Diniz Reis, Osmar Medeiros de Souza, Raul Carrion, Tabajara Ruas, Terezinha de Jesus Borges Pereira e o catarinense João Batista Rita, que militava aqui e é um dos nossos desaparecidos. E ainda há os muitos brasileiros que pediram asilo nas embaixadas do Panamá e do México, de onde ainda não se conhece a listagem.
O problema era que a ditadura brasileira não queria recebê-los de volta. Entre eles havia os banidos em 13 de janeiro de 1971 – os 70 presos políticos trocados pelo embaixador da Suíça no Brasil, Giovanni Enrico Bucher[3] -, que assessoriamente tiveram cassada sua nacionalidade, sobre os quais pesava uma virtual sentença de morte se retornassem ao país. O banido e, desde então, apátrida Ubiratan Souza conta que o delegado Fleury o advertiu para que não tentasse voltar: “Dizia ele que se eu voltasse seria morto”. Assim como os uruguaios e os bolivianos em seus países.
Tiveram de aguardar até dezembro, quando se completaram as negociações da Cruz Vermelha, a igreja e diversos organismos de direitos humanos com os países que acolheriam os latino-americanos banidos agora também do Chile, embarcados em voos na véspera e no próprio dia de natal de 1973, rumo à Europa.
Atualização da lista
A atualização entregue pelo Comitê Carlos de Ré às entidades chilenas de direitos humanos foi (e ainda está sendo) completada pela informação direta de quem lá esteve, mas não constava na “lista de Espinosa”. Uma rede de contatos está buscando a atualização, correção e complementação das informações sobre brasileiros presos e mortos no Chile. Muitas delas vieram através de exilados que relacionaram as pessoas que lembram ter estado num ou noutro local de prisão ou asilo.
O CCR solicita que quem tiver informações a acrescentar a esta lista acesse o blog comitedaverdadeportoalegre.wordpress.com ou a página do Comitê Carlos de Ré no Facebook e deixar sua mensagem e contatos.
[1] Dentre outros malfeitos, Espinoza foi o responsável pelo assassinato dos norte americanos Frank Teruggi y Charles Horman no Estádio Nacional, o que lhe valeu a pena de sete anos de prisão e inspirou o livro The Execution of Charles Horman, de Thomas Hauser, e o filme Missing, de Costa-Gavras, em 1982.
[2] Resistência no Exterior: os exilados brasileiros no Chile (1969-1973) Cátia Cristina de Almeida Silva, História da UFMT.
[3] Sequestrado no Rio de Janeiro no dia 7 de dezembro de 1970 e solto 40 dias depois em troca da liberação de 70 presos políticos, Giovanni Bucher foi embaixador suíço no Brasil de 1966 a 1970.