Grupo que deixou país após golpe de Pinochet retorna para agradecer acolhida
Manhã de 11 de setembro. Raul Ellwanger, 25 anos, acorda antes do horário normal. Uma greve de caminhoneiros provoca a escassez de alimentos, e quem não chegar cedo à fila do armazém corre o risco de ficar sem comida. Ao voltar para casa, na avenida Eliodoro Yañez, em Santiago, Ellwanger ouve pelo rádio as primeiras informações sobre o golpe que estava em curso. Horas depois, enquanto descongelava a carne chinesa que havia sido comprada para o almoço, vê pela janela da cozinha os caças Hawker Hunter sobrevoarem o Palácio de La Moneda.
Naquela manhã de 1973 teve início uma das ditaduras mais sangrentas da América Latina. Sob comando do general Augusto Pinochet, o regime durou até 1990 e provocou a morte ou o desaparecimento de cerca de 50 mil pessoas – embora não haja consenso sobre os números. O início da ditadura fez com que milhares de exilados políticos que viviam em solo chileno tivessem de procurar abrigo novamente.
Quarenta anos após o golpe, Ellwanger e um grupo de 15 ex-exilados irão pisar nas ruas de Santiago novamente. Eles embarcam na próxima semana com o objetivo de fazer um agradecimento pela acolhida que receberam durante o governo do socialista Salvador Allende, eleito presidente em 1970. A iniciativa é promovida pelo Comitê Carlos de Ré.
A agenda do grupo em Santiago inclui visitas ao Museo Nacional de La Memoria e a lugares históricos, como o Estádio Nacional, transformado em campo de concentração após o golpe, e o Palácio de La Moneda, sede do governo, que foi bombardeado na manhã de 11 de setembro de 1973. Uma das principais atividades ocorre no dia 9, na Alameda O’Higgins, local onde o poeta cachoeirense Nilton Rosa da Silva foi morto com um tiro na cabeça durante uma manifestação, em junho de 1973. Ele e outras vítimas serão homenageadas.
No dia 11, Ellwanger fará uma apresentação musical na Villa Grimaldi, espaço que também foi utilizado como centro de tortura pelos militares chilenos. O tom não será de revanche, mas de agradecimento. “Queremos manifestar a gratidão com que fomos recebidos e salvos pelos chilenos. Muitas pessoas que hoje são importantes, entre cientistas, artistas, políticos e professores, salvaram-se por causa disso”, justifica o músico, que coordena a excursão. Foi como um renascimento, afirma músico exilado
Assim como muitos conterrâneos, que tiveram que deixar o Brasil após o Ato Institucional nº 5 e o recrudescimento da ditadura militar, o músico gaúcho Raul Ellwanger procurou abrigo no Chile. “Foi como um renascimento”, recorda. Calcula-se que mais de 5 mil brasileiros tenham tomado o mesmo rumo – entre eles intelectuais como Paulo Freire, Ferreira Gullar e Fernando Henrique Cardoso.
Com documento “mais falso do que nota de mil”, Raul Ellwanger, militante da organização VAR-Palmares, chegou ao Chile no final de 1970. Naquele ano, o cerco do regime militar ao grupo ao qual ele pertencia havia aumentado. “Em janeiro, caiu a Dilma (Rousseff, atual presidente da República, que integrava a mesma organização). Em agosto, o Carlos Araújo (ex-marido de Dilma). Aí são presos mais ou menos 40”, recorda o músico. Ellwanger, por sua vez, fora condenado à prisão por envolvimento com grupos clandestinos, com base na Lei de Segurança Nacional.
Governado por um socialista democraticamente eleito, Salvador Allende, o Chile representava uma esperança de acolhimento. “Era o único país em que podíamos entrar sem passaporte”, confirma o músico. Em pouco tempo, ele recebeu uma bolsa de estudos na Universidad de Concepción – cidade localizada 500 km ao sul de Santiago –, assistência médica e um lugar para morar. No semestre seguinte, Ellwanger transferiu-se para o Instituto Pedagógico, em Santiago. Viveu na Capital chilena até 1973.
Ao contrário do exilado que nem sequer desfaz as malas, já pensando no dia da volta, o músico tratou de adaptar-se ao novo país. “Pensei: vou ficar vários anos aqui”, lembra. Para permanecer, necessitava de autorização expedida pelo Ministério do Interior do Chile. Raul guarda até hoje o último “documento de radicación”, que ele obteve na sede do ministério no Palácio de La Moneda. O que chama a atenção é a data: 10 de setembro de 1973 – um dia antes do golpe que forçaria o músico a procurar um novo abrigo.
No Chile, Ellwanger viveu com o também gaúcho Roberto Metzger – ao filho dele, dedicou a música O Pequeno Exilado, gravada por Elis Regina. O sustento vinha do trabalho como tradutor em português, francês e espanhol para a Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais. A atividade política continuava, assim como a música. Como Santiago abrigava exilados de várias nacionalidades, ele passou a ter contato com culturas desconhecidas até então – que influenciariam futuras composições. “As rodas de violão eram um festival latino-americano”, define. “O privilégio que tive foi chegar até a informação de que existiam aquelas músicas. Foi uma descoberta.”
Poucas semanas antes do golpe, Ellwanger viu o general Augusto Pinochet tomar posse como novo comandante do Exército chileno. Ante disso, o Tancazo, como ficou conhecida uma das insurreições de militares contra o presidente Allende já parecia anunciar que a experiência de um governo socialista estava ameaçada. Com a consumação do golpe e a morte de Allende – que cometeu suicídio –, o músico procurou abrigo na casa de amigos. “Imediatamente tem o toque de queda: a ordem é atirar em que andar na rua”, conta. Depois, ele saberia que o amigo Metzger fora preso e levado ao Estádio Nacional, e que a casa onde viviam havia sido saqueada pelos militares. (Mais tarde, Metzger embarcaria para Portugal.)
Chilenos favoráveis ao golpe passaram a denunciar brasileiros que viviam no exílio. Ellwanger escondeu-se na casa de amigos. “Eu saía no porta-malas de um carro. Numa esquina que ninguém via, eu parava e me mandava”, detalha.
A solução foi cruzar a fronteira mais uma vez. Desta vez, Ellwanger foi parar na Argentina. Chegou a tempo de assistir a posse de Juan Domingo Perón como presidente, no dia 12 de outubro de 1973. Voltou ao Brasil apenas em 1977, após a prescrição da pena pela qual havia sido acusado. Deu continuidade à carreira como músico e gravou dez álbuns. Entre suas músicas mais conhecidas estão Pialo de Sangue e Cigana Tirana. Ellwanger teve composições gravadas por Mercedes Sosa, Beth Carvalho e Elis Regina, entre outros. Aos 65 anos, ele vive em Porto Alegre.
Raul Ellwanger deixou Brasil em 1970 após o recrudescimento da ditadura militar
Fonte: Danton Júnior / Correio do Povo