Porto Alegre foi profundamente atingida pela grande enchente que assolou o estado do Rio Grande do Sul em maio passado. Os prejuízos foram incalculáveis para o comércio em geral, em especial o setor de bares e restaurantes, os serviços públicos e para uma enorme quantidade de famílias que tiveram as casas inundadas, quando não literalmente levadas pelas águas.
Não foi uma tragédia no sentido grego do termo, como o governo municipal quis impingir à população. Não foi a ira dos deuses, nem o destino que deixou a cidade embaixo d’água, mas a falta total de administração pública deste governo municipal e do anterior. Porto Alegre tem um sistema de diques, muros e bombas para retirar água bastante razoável.
Segundo os especialistas, grande parte do que aconteceu poderia ter sido evitada. A Revista Pesquisa, da FAPESP, edição de julho de 2024, n. 342, traz uma reportagem sobre o ocorrido no estado com o título “Calamidade Prevista”. Nela o engenheiro Vicente Rauber, diretor entre 1992-93 do Departamento de Esgotos Pluviais (DEP) da Cidade de Porto Alegre, órgão extinto em 2017, afirma: “Não teríamos 10% da inundação que vimos em Porto Alegre se este sistema, que é robusto e eficiente até a cota de 6 metros, tivesse recebido a manutenção corriqueira mínima” (p.47).
O ex-diretor do DEP não está falando de grandes obras, que levariam a cidade à falência de seus recursos, mas de “manutenção corriqueira”, o que o atual prefeito de Porto Alegre, Sebastião Melo, não fez. Durante as cheias, nas entrevistas que dava, não conseguia articular qualquer resposta em meio ao caos. Ficava com um olhar parvo, virava-se de um lado para o outro, em busca de apoio de auxiliares, lembrando a cena do fantástico personagem de John Travolta, em Pulp Fiction, (Tarantino, 1994) quando foi mandado distrair a mulher do chefe numa noite em que ela se encontrava sozinha (a cena virou um popular meme).
Agora estamos quase às vésperas das eleições municipais e o apalermado prefeito da enchente de 2024 é candidato à reeleição. E a enchente? Ora, a enchente é responsabilidade do governo federal, do Ministro Paulo Pimenta, para o prefeito já é coisa do passado. E então ele dá um pretenso golpe de mestre: não dança com a mulher do chefe (Uma Thurman), em outra das mais sensacionais cenas do cinema, mas escolhe para candidata a vice-prefeita uma recente ex- tenente-coronel do exército, Betina Worm, que se filia a jato no PL para poder se candidatar.
A recente ex-tenente-coronel, por óbvio, nunca teve qualquer participação política mas, segundo a revista Forum, já teve opiniões bastante fortes: “fez apologia ao sionismo, ao militarismo radical e defendeu fake news na pandemia, além de sugerir porte de armas para crianças, segundo o deputado Matheus Gomes” (revistaforum.com.br 22/07/2024 acessada em 15/08/2024).
O pretenso golpe de mestre de Sebastião Melo, com a companhia recente da ex-tenente-coronel, pretende deslocar o foco da campanha, relacionado a sua grande responsabilidade pelo que ocorreu na cidade durante a enchente, para a questão da segurança. Afinal, no senso comum, alguém do Exército deve entender de segurança, o que é no mínimo má fé.
Do outro lado da contenda eleitoral está a deputada Maria do Rosário, do PT, cuja vice é Tamyres Filgueira, do PSOL. À candidata de oposição cabe desconstruir o álibi do incumbente. Não é uma tarefa fácil, mas é muito possível de ser feita. Não me cabe apresentar sugestões para a campanha de Rosário, mulher de grande experiência política mas, pensando alto, talvez fosse importante trazer a enchente para o centro do debate, mostrando a incompetência administrativa do atual prefeito, e colocando no centro da discussão as medidas do governo federal. Há críticas? Sim, sempre há, mas também é premente mostrar o que não foi feito durante os 4 anos de governo e o que tem sido feito desde os primeiros momentos da crise pelo governo federal. Rosário pertence a uma chave político-ideológica no país e não pode ter medo de se expor.
Relativamente à recente ex- tenente-coronel, que seja enfrentada! Como, até por atividade profissional no Exército, é veterinária, deve entender muito pouco de segurança. Rosario e Tamyres precisam apresentar ações de segurança que incluam as pessoas que vivem em regiões periféricas e perigosas da cidade. Rosário é uma mulher comprometida com os direitos humanos, o que lhe tira votos, por incrível que possa parecer! Pois reconstrua-se o sentido dos direitos humanos, fale-se deles, como o princípio da segurança de todos, principalmente dos mais necessitados. Não se pode ter medo de expor temas em que acredita. É necessário debater com o bolsonarista Sebastião Melo e com a recente ex-tenente-coronel sobre responsabilidade pública, responsabilidade pela propriedade e pela vida das pessoas, sempre e quando um evento de grande magnitude, como a enchente de maio, se apresentar. E preciso, mais do que nunca discutir a fundamental questão do acesso à educação infantil e da qualidade da educação básica, além da questão da segurança.
(*) Professora Emérita da UFRGS; Cientista Política; Professora convidada do PPG de História da UFRGS publicado originalmente no Sul21