O texto abaixo é uma colaboração do Professor e Doutor Artur Henrique Franco Barcelos, arqueólogo, historiador e docente da Universidade Federal do Rio Grande (FURG).
É cedo para análises? Depende. Depende do que estamos analisando e desde quando. Correndo o absoluto risco de ser repetitivo, vou voltar uma vez mais ao que venho dizendo desde 2016. *

Não se trata mais de eleições. Elas são já uma parte quase insignificante do que está em curso no ocidente e que, para o Brasil, começou a se concretizar em 2016. Me refiro a verdadeira disputa que existe e na qual estamos envolvidos. A disputa pelo tipo de sociedade que seremos e/ou queremos ser. * Ao menos desde as revoluções populares socialistas do século XX, algumas que acabaram se transformando em guerras civis com intervenção estrangeira (Rússia, China, Cuba, Coreia, Vietnã, etc.), havia duas amplas perspectivas a serem debatidas com as pessoas: a perspectiva Liberal, na qual as liberdades individuais se sobressaem às coletivas, fazendo com que a estrutura política e jurídica fosse dirigida para garantir a propriedade privada, sobretudo a propriedade dos meios de produzir a riqueza material, intelectual e cultural da sociedade; e a perspectiva Socialista, onde os interesses coletivos se sobrepõem aos individuais, fazendo com as estruturas políticas e jurídicas buscassem a eliminação progressiva da propriedade privada, sobretudo a dos meios de produção da riqueza. * A perspectiva Liberal se impôs primeiro. Mas após o fim da segunda guerra mundial, cuja vitória das democracias liberais não seria possível sem os socialistas da União Soviética, os liberais passaram a adotar cada vez mais políticas de distribuição de renda e de contenção das desigualdades materiais. Graças a organização mundial do capitalismo, algumas nações conseguiram implementar políticas sociais exitosas, garantindo a seus cidadãos e cidadãs, súditos e súditas, o chamado Estado de Bem Estar Social. Foi uma clara resposta ao risco de crescimento da organização dos trabalhadores e de suas reivindicações. A esquerda liberal se desenvolveu bem nesse ambiente, flertando com a União Soviética e com a China, mas participando do sistema de Democracia Representativa. Assim, a social-democracia acreditou que estava participando de um jogo justo, no qual a disputa pelo controle do Estado se dava pelo maior ou menor grau de intervenção deste nas relações capitalistas de produção. O livre mercado tinha que aceitar que o Estado era um ente regulador, que garantia Saúde, Educação e Segurança públicas. * No interior dessas democracias sempre houve os que pugnavam pelo aprofundamento do papel do Estado, chegando mesmo a propor a ruptura com esse sistema, enquanto no outro polo sempre houve os que propunham a primazia dos direitos individuais e o fim dos serviços públicos. Mas em linhas gerais, as tendências social-democratas da esquerda prevaleceram e as tendências de extrema direita pareciam caricatas. Fora do ambiente da Europa os EUA reproduziram essa mesma disputa, embora lá a papel do Estado é muito mais limitado em termos de serviços diretos (Saúde e Educação, por exemplo), mas muito útil para defender os interesses dos capitais norteamericanos. Já no resto da América, a exceção do Canadá e de Cuba, a lógica tem sido avanços e recuos da social-democracia e os tradicionais golpes de Estado. Afinal, na organização internacional do capitalismo essas regiões são consideradas periféricas e atrasadas. E assim devem permanecer.

* Esse era o tradicional campo de disputas até bem pouco tempo atrás. Embora na década de 80 Margareth Thatcher tenha sido o melhor aviso de que esse acordo débil estava sendo diluído, foi após a crise de 2008 que se romperam todas as possibilidades de seguir por essa via como forma de disputar o futuro. Foi Thatcher quem disse que a sociedade não existe, e sim apenas os indivíduos (e a família). * O que vemos hoje? É inegável que as ideias de Thatcher foram atualizadas. E com sucesso. Em uma síntese bem resumida a lógica em curso é: 1) Cada pessoa nasce livre e seu destino depende de seu esforço. Ter nascido em condições materiais e emocionais favoráveis ou desfavoráveis é um mero detalhe. 2) Seu esforço individual é que dirá se alcançou ou não o mérito que lhe dará acesso as melhores posições sociais. 3) As desigualdades são naturais, assim como as rochas e as árvores, não havendo nada a fazer a não ser lutar para vencer os demais em um mundo competitivo. 4) O Estado é uma instituição que deve garantir a liberdade plena do indivíduo para que esse possa usar sua máxima potência criativa, garra, esforço e inteligência para gerar progresso em todos os sentidos. Daí a defesa intransigente da qualidade da iniciativa privada. 5) Todos que pregam que o Estado deve atender através da arrecadação e distribuição da riqueza àqueles que não tem os meios materiais para participar da disputa por trabalho e renda são mentirosos. Apenas querem se instalar no Estado e viver dos recursos públicos, enriquecendo através da corrupção. 6) O Estado não funciona justamente porque está tomado por pessoas falsas. Assim, os serviços não funcionam e a única forma é entregar para a iniciativa privada. 7) Os que não podem pagar pelos serviços terão serviços de menor qualidade, correspondentes a sua realidade. 8) A violência decorrente da desigualdade deve ser combatida com forças de repressão. Do Estado, pois cabe a esse defender o que está no item 4, e de empresas privadas de segurança. 9) A gestão do Estado deve estar nas mãos daqueles que sabem trabalhar com poucos recursos e são criativos, pois o Estado não pode ter o privilégio de funcionar diferente de qualquer empresa privada. 10) Por fim, e não menos importante, o Estado deve garantir que os direitos individuais sejam àqueles de determinado campo moral majoritário. É assim que se dá a aproximação com os conservadores em países como o Brasil. Se a maioria é de determinada religião ou crença em uma determinada estrutura social, essa irá definir as políticas morais. É aqui que o Patriarcado mostra sua vitalidade. * Essa tendência esboçada acima está alcançando hegemonia no Brasil. Com ou sem a extrema direita. Portanto, nosso menor problema hoje é Bolsonaro. Ele é um mal necessário para que esse ideário acima possa seguir se expandindo. A extrema direita faz o serviço sujo, solapando a discussão no campo dos valores através de seus apelos religiosos (neopentecostalismo) e verde-ameralismo (patriotas). *

É exatamente aqui que nos encontramos. É exatamente por isso que as esquerdas de todas as matizes foram fragorosamente derrotadas nestas eleições de 2020. Não temos um programa para disputar com esse pacote individualista e conservador. A sociedade sobre a qual teorizamos não existe mais. Ou existe de forma residual. O capital se reorganizou através do controle do mundo digital. Já são parte do passado aquelas visões românticas de que a Internet seria um ambiente livre e canal para subverter a ordem. Entendem porque insisto tanto falando em coachs e inteligências artificiais?? * O que fazer? Na minha humilde opinião, tratar cada vez mais de estudar e aprender as entranhas da ideologia neoliberal. Tentar entender porque é tão sedutor num mundo desigual acreditar que cada um por si é o melhor caminho. Tentar descobrir como sair da armadilha da ideia de que a corrupção é um instrumento exclusivo de quem quer apenas usar o Estado a seu bel prazer, mantendo o povo como refém de migalhas eleitoreiras. Tentar entender como as pessoas acreditam cada vez mais que o sucesso é apenas questão de esforço pessoal, o que leva a dispensar o Estado. *

E as eleições? Para mim são apenas isso. Eleições. Neste modelo sempre foram isso, um momento ilusório de que se estava discutindo o futuro com as pessoas. Mas agora estamos falando da ruptura absoluta com concessões mínimas que o capital fazia. Esse campo que saiu fortalecido na eleição independe do bolsonarismo para seguir com esta agenda. O Estado, mesmo mínimo, ainda será sempre lugar para ganharem dinheiro e fazer seus donos ganharem dinheiro. * Por fim, a pandemia de coronavirus quase não pesa na equação. Só serviu para acirrar a polarização com a extrema-direita, que ainda é útil ao neoliberalismo. Mesmos sem pandemia seriamos reprimidos nas ruas. Somos aqueles e aquelas que não acreditam nessa ideologia. Que achamos que os seres humanos, em sua imensa diversidade, são fruto da colaboração. Só chegaram até aqui porque na base da sociedade sempre houve solidariedade. E até na base estão impondo a regra de "Deus tem um plano só para você". * E antes de saírmos dizendo que há que dar formação política às massas, temos que fazer nossa própria formação política para esses novos tempos. Reforçar nossas convicções. Caso contrário não teremos nada a dizer e ninguém irá querer nos ouvir. * Enfim, se você chegou até aqui, obrigado. Se acha que estou errado, por favor, aponte meus erros.
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